A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH. O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e o respetivo vídeo associado enquanto durar a campanha (pode ver o primeiro vídeo aqui).
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre no direito internacional como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. A CCH tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (IIDMA, de Madrid), a rede The Planetary Accounting Network ou a Earth Trusteeship Initiative.
Hoje entrevistamos María Fernanda Espinosa, Presidente da 73ª Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas (2018/2019), que foi também ministra dos Negócios Estrangeiros, ministra coordenadora do Património Humano e ministra da Defesa Nacional do Equador. E que é a primeira embaixadora da Casa Comum da Humanidade (ouvir entrevista completa em inglês aqui).
Tem sido uma pioneira ao longo de sua carreira: foi a primeira mulher a tornar-se representante permanente do Equador junto das Nações Unidas, foi também a primeira mulher latino-americana nomeada para presidente da Assembleia Geral da ONU e apenas a quarta mulher a ocupar esse cargo na história dos 75 anos da organização. Porque aceitou a proposta para ser a primeira embaixadora da Casa Comum da Humanidade (CCH)?
Bem, foi um grande privilégio ser solicitada pela Casa Comum da Humanidade para me tornar a sua primeira embaixadora, ou digamos, embaixadora da boa vontade. Porque a CCH está a olhar para o Sistema Terrestre, para o nosso planeta, como um recetor holístico de relacionamentos, e estou convencida de que uma das principais redefinições de que precisamos atualmente é pensar num novo pacto entre a sociedade e o planeta Terra. E de um novo contrato social para estabelecer não apenas a harmonia nas relações entre a Humanidade, mas também nas nossas relações com o planeta porque, infelizmente, consideramos a Natureza e os seus ciclos garantidos. E os direitos da Natureza nesse novo contrato não significam que esta é um objeto que podemos usar, afetando infinitamente e prejudicando os seus ciclos, mas sim que podemos regenerar. Por isso vi na proposta da Casa Comum da Humanidade essa visão global e sistémica do planeta, bem como a possibilidade de advogar por um novo contrato social entre os humanos e a Natureza.
A sua formação profissional começou na linguística e depois nos estudos da Amazónia, onde passou algum tempo com comunidades locais. Que impacto teve na sua carreira?
O meu primeiro contacto com a região amazónica foi uma mudança de vida no início da minha carreira. Foi-me oferecido por volta de 1987 um cargo para avaliar os sistemas de educação bilingue na região amazónica do Equador, bem como uma avaliação geral da Amazónia na época. Nessa altura, a minha experiência de trabalho era mais nas terras altas do Equador, estava fascinada por etnolinguística e pela conexão entre língua e cultura. E aquela oportunidade que me levou para a Amazónia mudou completamente toda a minha paixão pela região, pela conexão entre os povos indígenas e o seu meio ambiente. Compreendi muito rapidamente que a língua era apenas um meio de comunicação veicular, e o que foi fascinante para mim foi descobrir as relações muito próximas entre estilos de vida e culturas dos povos indígenas e sabedoria e conhecimento através da linguagem, mas em relação ao ambiente natural. Nas línguas indígenas amazónicas há, por exemplo, muitas palavras diferentes que significam verde. Para diferentes tipos de floresta usam diferentes nomenclaturas para verde, uma taxonomia muito fascinante para a medicina tradicional e para a agricultura. Passei a estar muito conectada e atraída por esta relação entre cultura e Natureza e a formulação de políticas públicas. Foram anos perfeitos que passei a trabalhar na Amazónia com povos indígenas em pequenos projetos para melhorar os seus rendimentos e abrir mais oportunidades económicas para melhorar a qualidade da sua educação, o acesso de jovens mulheres e homens às universidades, etc. Também juntei forças com organizações indígenas da Amazónia na sua luta por direitos territoriais. Foi uma luta bastante bem-sucedida porque hoje grande parte da Amazónia, especialmente no Equador, pertence aos povos indígenas, que têm direitos coletivos nos seus territórios. Também contribuí, embora de forma modesta, para dar poder económico e político às mulheres indígenas. E trabalhei ainda na preparação da sua participação e envolvimento na Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim em 1995.
Os povos indígenas desempenham um papel muito importante no combate à crise climática e cerca de um quarto da superfície terrestre do Mundo, que é o lar de alguns importantes sumidouros de carbono, pertence ou é administrada por estes povos. Acha que a proposta da Casa Comum da Humanidade pode ajudar a apoiar os povos indígenas e a proteção de suas terras?
Essa é uma questão muito crítica, as alterações climáticas e como é que as sociedades humanas estão a responder a este desafio, ou melhor, a esta crise climática que estamos a enfrentar. É uma responsabilidade da sociedade, mas acima de tudo dos nossos líderes. Em cada relatório que lemos, mesmo antes da Covid-19, sobre a concretização da Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e do Acordo de Paris, vemos que há um enorme gap nas emissões, e um relatório recente sobre este assunto concluiu que não estamos a fazer corretamente o nosso trabalho de casa. Por isso, se continuarmos com a mesma tendência, a crise climática vai destruir as nossas economias, o nosso futuro, os nossos serviços de ecossistemas, enfim, tudo. Isso vai criar um movimento massivo de populações, com grandes migrações e refugiados climáticos. E não serão às centenas mas aos milhões, se as coisas continuarem como estão. Voltando a falar da Amazónia, a região é um enorme sumidouro de carbono. E, infelizmente, estamos a assistir a uma devastação assustadora, à destruição da bacia amazónica. E isto acelera as alterações climáticas e tem um impacto nos modos de vida e meios de subsistência das comunidades locais e dos povos indígenas. Portanto, a situação não é muito promissora, mas não devemos perder a esperança. Eu sou uma otimista teimosa e ainda acredito no poder da cooperação, da solidariedade, de um sistema multilateral forte, do papel das Nações Unidas, da possibilidade de realmente se construir este novo pacto social, que é o Pacto Global para o Ambiente, um projeto muito promissor.
O Pacto Global para o Ambiente que acabou de mencionar foi proposto e discutido pela primeira vez durante o seu mandato como Presidente da Assembleia Geral da ONU. Porque é que esta iniciativa é tão importante? E o que deve abordar?
Deve ser uma declaração de princípios, mas esta declaração não pode ser mais do mesmo, ou seja, é preciso redefinir, repensar, eu até diria transformar, a relação entre a sociedade, a economia, a política e a Natureza. Isto é, não pretende sobrepor-se ou duplicar esforços, mas antes ser um guarda-chuva, um andaime dos acordos ambientais multilaterais já existentes. E acho que no final o objetivo principal do Pacto Global é fortalecer o sistema do direito ambiental a todos os níveis, do local ao internacional e ao regional. Um pacto deste tipo seria com certeza uma grande ajudante para alcançarmos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a Agenda 2030. Portanto, penso que tem um potencial e um poder tremendos, se tivermos em conta que há mais de 250 acordos ambientais multilaterais assinados pela maioria dos países do Mundo. Não há outra maneira de olhar para o direito ambiental internacional que não seja a partir de uma perspetiva holística interconectada. Por outras palavras, na perspetiva do Sistema Terrestre que andamos a discutir e que a Casa Comum da Humanidade está a usar como mote. Na verdade, não existe mecanismo de monitorização quanto à aplicação daqueles 250 acordos ambientais multilaterais, falta coerência, interconectividade, coordenação, responsabilidade. É o que eu chamo de contradição epistemológica, porque a Natureza, o ambiente, o Sistema Terrestre são por definição sistémicos, indivisíveis, interdependentes. É muito estranho, mas hoje observamos como entidades separadas os oceanos, as zonas húmidas, a poluição do ar, a camada de ozono, o clima ou a biodiversidade. Mas a Natureza não funciona assim, não podemos ter uma lei internacional sobre a biodiversidade e outra separada sobre as espécies migratórias, por exemplo. Não podemos ter a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de um lado e a Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas do outro. Não podemos ter os princípios da floresta para lidar com as florestas, mas um organismo separado para lidar com o clima. E por aí adiante. É bom que eles continuem a existir, mas precisamos de um guarda-chuva abrangente, de um conjunto racional de princípios que podem dar sentido a todas essas abordagens setoriais do Sistema Terrestre e da Natureza. Para isso a necessidade de um Pacto Global para o Ambiente é crítica.
Então precisamos de uma evolução conceptual para tornar possível abordar questões como as alterações climáticas, que transcendem as fronteiras?
Com certeza. O Sistema Terrestre, os ecossistemas, a Natureza, não têm fronteiras nacionais. O mesmo se passa quando olhamos para o oceano, a dinâmica dos rios, a dinâmica das florestas, a floresta amazónica, ou a vida que acontece não a nível do solo, mas na parte verde mais alta da floresta, que é um fluxo de interconexões de energia. A ideia de fronteiras nacionais é realmente artificial. Assim, quando pensamos no ambiente, nas relações entre as sociedades, na economia, nos nossos padrões de consumo e de produção, não devemos pensar num país ou comunidade específica, mas no planeta como um todo. E com a Covid-19 aprendemos uma lição difícil: que somos tão frágeis como espécie, tão vulneráveis, que a nossa força reside na nossa interconexão e capacidade de agirmos em conjunto, e o Sistema Terrestre é o nosso património comum. E por isso precisamos de aperfeiçoar as nossas ferramentas teóricas, o nosso pensamento, sobre como tratar, negociar e cuidar do nosso património comum, dos nossos bens comuns, ou seja, a atmosfera, os oceanos ou a biodiversidade devem ser considerados os nossos bens comuns globais.
De facto, a entrevista com o cientista Will Steffen publicada na semana passada deu para entender que somos todos cidadãos globais, não importa se somos dos EUA, Austrália ou Equador, todos vivemos no mesmo planeta, o que significa que é realmente do nosso interesse proteger a nossa casa comum. Mas hoje estamos a viver num mundo cada vez mais fragmentado e a assistir ao crescimento do nacionalismo. Perante esta realidade, como vê que a proposta da Casa Comum da Humanidade possa vir a ser concretizada?
Peço desculpa por ter falado da crise provocada pela pandemia da Covid-19, mas este é o novo mundo em que vivemos. E já perdemos tantas vidas e vimos todas as disfunções das nossas sociedades ao espelho, olhando para todas as desigualdades ou dificuldades, que é importante ter Estados fortes, sistemas de saúde pública fortes, etc. E acho que aprendemos, talvez da maneira mais difícil, que somos melhores quando agimos juntos, e esta não é apenas uma frase bonita, é neste caso literalmente uma questão de vida ou de morte, e o nível de quanto nos protegemos, respeitamos os outros, mantemos o distanciamento social e cuidamos dos outros, tem sido uma lição muito grande. A lição é que nenhum país é seguro até que todos os países estejam seguros quando falamos sobre uma pandemia, e o mesmo vale para as alterações climáticas e para a crise de extinção. Passei vários anos da minha carreira a trabalhar para a IUCN, a União Internacional para a Conservação da Natureza, que divulgava a Lista Vermelha das espécies em vias de extinção. Esta lista, em vez de diminuir tem aumentado de uma maneira incrível. E quando olhamos para todas as avaliações ambientais, os dois pontos fracos são a crise de extinção, a perda de biodiversidade e, claro, a crise climática. E estes problemas não podem ser resolvidos por um único país, ou apenas por um presidente ou líder político, exigem antes um sistema multilateral forte, uma forte ação concertada.
Em junho a Fernanda Espinosa juntou-se a um grupo de líderes mundiais que estavam a pedir ao G20 – a organização das 19 maiores economias do mundo mais a UE - para promover a concretização do seu plano de ação e ter uma resposta global coordenada mais forte às emergências de saúde, económicas e sociais que enfrentamos. Quais são as ações que o G20 deve tomar para enfrentar não apenas a pandemia global, mas também a crise climática?
Bem, o G20 é o grupo das economias mais fortes e poderosas do mundo, o que significa que tem uma responsabilidade especial para abordar os principais desafios da Humanidade. Não apenas para responder à crise da Covid-19, mas também para lançar pacotes de recuperação económica como os programas de 11 triliões de dólares (9,4 biliões de euros) para a recuperação dos países mais ricos. A minha preocupação, mas também a minha esperança, é que esses pacotes de recuperação económica invistam em áreas mais verdes e sustentáveis, que garantam empregos mais seguros, empregos com dignidade e dentro dos padrões adequados, e que garantam também uma solidariedade e cooperação com os países em desenvolvimento, do sul, em relação à sua dívida, de modo a fornecer o financiamento necessário para o Fundo Verde do Clima, concretizar os seus compromissos no âmbito do Acordo de Paris e as suas metas de mitigação, as contribuições nacionais acordadas, etc. E temos visto que alguns países têm encarado isto muito a sério, o que significa que se tornarão países neutros em carbono em 2050. Infelizmente, o último Relatório do Gap das Emissões das Nações Unidas, de 2019, é muito claro ao mostrar que nem todos os países do G20 estão a cumprir os seus compromissos e metas. No entanto, eles são mais ricos, têm mais meios, são poderosos na arena internacional e por isso têm maior responsabilidade a nível nacional, regional e também na solidariedade e cooperação global com os países em desenvolvimento, do sul.
O Relatório do Gap das Emissões revela que as emissões globais de gases com efeito estufa precisam de cair cerca de 7,6% por ano durante a próxima década se queremos cumprir as metas do Acordo de Paris. Os países do G20 representam quase 80% das emissões globais, portanto é imperativo que aumentem a sua ambição e a sua ação climática. Os esforços de recuperação por causa da Covid-19 oferecem a oportunidade de fazer exatamente isso, agora que já estamos a ver vários países a defenderem uma recuperação verde?
Sim, a recuperação verde é uma recuperação de baixo carbono, mas também significa empregos verdes, empregos justos, ter mulheres e homens com as mesmas funções e qualificações a recebe salários iguais, para realmente acabar com a diferença de género atual, que é superior a 20%. Quando falamos de recuperação verde, de um New Deal Global Verde Global, etc., estamos a usar uma forma abreviada de dizer uma nova era na nossa maneira de pensar, um novo paradigma de desenvolvimento, que seja livre de discriminação, livre de exclusão, que realmente leve a sério a frase da Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas de não deixar ninguém para trás. Que promova sociedades conscientes do clima, do meio ambiente, do Sistema Terrestre. E acho que a melhor ajuda que podemos ter é este guarda-chuva de princípios, que basicamente é o objetivo do Pacto Global para o Ambiente.
Tem lutado muito pela igualdade de género, porque um dos mais poderosos agentes de mudança que a sociedade ignora são as mulheres. Acredita que avançar na igualdade de género e em dar poder às mulheres podem proporcionar resultados e soluções intersectoriais de longo prazo para a crise climática?
Absolutamente! E não só para responder à crise climática. Há não sei quantos estudos, números, dados a demonstrar que as sociedades que são mais iguais e que, conscientemente, reduziram o gap de género, são os países mais pacíficos. E basta apenas lembrar o reconhecimento do Conselho de Segurança da ONU que ligou as mudanças climáticas às mulheres, à paz e à agenda de segurança, por exemplo, o que foi reconhecido a nível internacional. A resolução da ONU sobre as mulheres, paz e segurança está a chegar ao seu vigésimo aniversário em outubro. E há de facto uma forte conexão entre a segurança climática e o papel das mulheres, tal como relativamente ao chamado índice de paz. Ou seja, os países que concretizam melhor em igualdade de género e dão poder às mulheres são, em geral, países que têm um índice de paz maior, uma sociedade mais pacífica. Mas, infelizmente, a situação atual dos direitos e do poder das mulheres não é muito promissora, e o mesmo que acontece com o clima. E há números a nível global que surpreendem: 35 milhões de mulheres precisam de ajuda humanitária, uma em cada cinco mulheres refugiadas sofre violência sexual e há menos de 7% de mulheres a participar ou a ser ativas em processos de paz em todo o mundo, quando as evidências mostram que quando as mulheres estão envolvidas em processos de paz, os acordos têm maior probabilidade de durar mais tempo. E há mais: 85 países em 193 nunca tiveram uma mulher como Chefe de Estado ou primeira-ministra e pouco mais de 20% de mulheres fizeram parte de governos; e só 25% dos membros dos parlamentos são mulheres.
Mas não se trata apenas de aritmética, de números.
Pois não. É verdade que somos metade da população mundial e merecemos ser representadas pelo menos a 50%, o que não está a acontecer. Mas nós, mulheres, também trazemos qualidade, diferentes perspetivas, eficiência, enfim, somos um valor. E o nosso trabalho e contribuição para sociedade dá valor acrescentado às nossas democracias. Portanto, não se trata apenas de quantidade, trata-se de qualidade e isto já foi comprovado em todos os campos e áreas da nossa vida social e económica. Se olharmos, por exemplo, para os países de sucesso em termos de tratamento, gestão e resposta à crise da Covid-19, existem exemplos incríveis de mulheres, de mulheres Chefes de Estado e de governo na Nova Zelândia, Finlândia, Islândia. E Barbados, com a excelente liderança de Mia Mottley, não apenas como primeira-ministra de Barbados mas também como presidente da Comunidade Caribenha. Portanto, não é apenas uma questão simbólica e este ano estamos a comemorar os 25 anos da histórica Conferência Mundial das Mulheres em Pequim e da sua Plataforma de Ação. E tenho o privilégio de participar na direção da comissão das comemorações “Pequim+25”. Há muitos movimentos no mundo feminista. Está a formar-se o “Generation Equality Forum” com participação de pessoas fantásticas da sociedade civil e com seis coligações de ação, incluindo uma coligação sobre o clima e o ambiente e um processo muito importante para um novo pacto sobre as mulheres, a paz e a segurança. Portanto, há um movimento impulsionado por vozes fortes de mulheres em todo o mundo. Tenho ainda o privilégio de ser embaixadora de boa vontade do FILAC, o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e das Caraíbas. E há também muitos movimentos de mulheres indígenas das Américas. Portanto, há esperança, há grande abertura para o diálogo e para criatividade em todas estas iniciativas, o que abre mais oportunidades para impulsionar o tão necessário Pacto Global para o Ambiente.
Uma vez, a primeira Presidente da Irlanda, Mary Robinson, disse que se removêssemos as barreiras à liderança das mulheres, resolvíamos o problema das alterações climáticas muito mais rapidamente.
Estou 100% de acordo! Tenho o privilégio de compartilhar muitos espaços com a Mary Robinson e tenho uma grande admiração e respeito por ela, pela sua intervenção na arena internacional, que tem realmente dado que falar. Quando as mulheres tiveram a oportunidade, mostraram talento e eficiência para lidar com a Covid-19, e quando nos for dada também a oportunidade, estou convencida de que seremos uma grande contribuição para mudar e superar a crise climática. Tenho a certeza.
Sobre a Casa Comum da Humanidade, a magnitude e a urgência para impedir uma catástrofe climática exige um mecanismo para projetar e concretizar políticas públicas globais. E exige a criação de instrumentos e instituições que viabilizem a ação coletiva. Estabelecer um suporte legal global, como reconhecer o Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, vai ajudar-nos a evitar essa catástrofe?
Sim, mas a crise climática não é um problema por si só, e espero que esta ideia não leve a interpretações erradas. É antes um sintoma, tal como acontece quando temos febre alta, mas neste caso é febre alta do planeta. E quando estamos com febre alta queremos saber porquê, se temos uma infeção, se temos a Covid-19, enfim, o que é que está errado. E no caso do planeta o que está errado é precisamente a nossa produção e padrões de consumo. O verdadeiro problema é o nosso modelo de desenvolvimento e é isso que precisamos de tratar. Assim, as alterações climáticas são um indicador de uma ameaça de extinção. E os incêndios na Amazónia são sintomas de que a sociedade humana está disfuncional. Lamento dizer isto, mas é exatamente o que precisamos de corrigir. E pensar nos nossos bens comuns globais, na nossa responsabilidade partilhada, na necessidade de ação concertada é o que realmente vai acabar com os sintomas. Por exemplo, se não compreendermos que temos Covid-19 e que precisamos de tratamento, a nossa febre não desaparece. E quando temos uma infeção e tomamos antibióticos (eu não tomo muito, estou mais próxima de outros tipos de medicina) diminuímos a febre, o sintoma, mas não sabemos se curámos a infeção. Lamento usar esta metáfora, mas às vezes precisamos de perceber que as alterações climáticas não dizem respeito a aritméticas de mitigação, de descarbonização das economias e do nosso funcionamento como sociedade. É antes uma questão de cultura, de atitude em relação aos nossos bens comuns globais. E acho que é exatamente isso que entra em jogo quando pensamos na necessidade de um conjunto abrangente de princípios sobre o Pacto Global para o Ambiente, que tem de ser parte de um novo contrato social pós-Covid-19. Esta é a oportunidade que nos foi dada pela terrível e dolorosa pandemia pela qual estamos a passar atualmente. E precisamos de concordar com uma definição operacional funcional dos bens comuns globais, porque precisamos de gerir de forma sustentável e responsável esses bens. É este o cerne do problema.
O que acha que precisamos de fazer como sociedade para avançar?
Bem, precisamos de todo um despertar das sociedades, mas principalmente dos jovens. Tenho a certeza de que os jovens em geral têm sido terrivelmente afetados pela atual crise económica. O desemprego, a insegurança e o medo têm afetado todos, mas de uma forma particular grupos vulneráveis como os jovens. Por isso os nossos líderes precisam de passar à ação, é necessária uma liderança forte, bem como cooperação e ação coletiva, mas precisamos também do envolvimento dos cidadãos, para exercermos a nossa condição de cidadãos globais, e todos nós temos um papel a cumprir, todos devemos tornar-nos defensores deste novo contrato social entre as sociedades e a Natureza, o Pacto Global para o Ambiente. Tem de haver um apelo para que os cidadãos de todo o mundo sejam mais conscientes, responsáveis e ativos neste debate, e assegurar que ninguém fica para trás, não apenas para alcançar a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mas também na oportunidade de recuperar melhor o planeta coletivamente.
Ou seja, não podemos voltar ao business as usual, e a proposta da Casa Comum da Humanidade fornece um enquadramento para apoiar esses esforços.
Exatamente. Vamos continuar a trabalhar em conjunto para isso acontecer, devemos usar todos os nossos espaços de influência, e nos locais onde interagimos - infelizmente, usando agora o Zoom e outras plataformas de reunião - devemos assegurar que estamos a transmitir essa mensagem. Devemos ter a certeza de que, para nos tornamos - e todos nos devemos tornar - embaixadores de um novo mundo que é mais humano, sustentável e respeitável, esse objetivo é mais fundamentado na solidariedade e no amor, porque é isso que precisamos hoje. E, claro, para pressionar os nossos líderes a assumir a responsabilidade. Por isso sou também uma forte defensora do trabalho das Nações Unidas.
A ONU é insubstituível?
Claro que é. Estamos a comemorar os 75 anos de sua fundação e acho que é a nossa Casa Comum, parafraseando a Casa Comum da Humanidade, mas esse é o nosso guarda-chuva. E quando me dizem que a ONU deveria fazer isto e aquilo eu pergunto: mas quem é a ONU? Nós somos a ONU. Somos responsáveis pelo seu futuro e por melhorar o seu desempenho em diversas frentes e padrões da vida, a ONU é uma criação nossa, e é por isso que nós a devemos defender e melhorar.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana The Planetary Press