Tiago Rolino, 43 anos, deixou a advocacia para se dedicar à investigação académica no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: integra o projeto PARENT, que procura envolver homens no exercício ativo da paternidade. Assumidamente "católico, praticante", não poupa críticas ao manifesto assinado por cerca de uma centena de personalidades portuguesas que aponta baterias à disciplina Cidadania e Desenvolvimento: "É mais uma tentativa das forças de direita e de extrema direita para impedir o avanço das liberdades e da defesa das diversidades e dos direitos humanos".
O manifesto "Em defesa das liberdades da educação" é uma tentiva de retrocesso nos avanços na educação para a cidadania?
Este manifesto é mais uma tentativa das forças de direita e de extrema direita que vão grassando por todo o mundo, com foco também na Europa (vide os casos da Hungria e da Polónia), para impedir o avanço das liberdades e da defesa das diversidades e dos direitos humanos. Porque é disto que se trata, de direitos humanos e de autodeterminação. A educação para a cidadania foi uma conquista de muitos anos de luta e uma introdução verdadeiramente essencial e urgente na educação dos nossos jovens. Este manifesto pretende o regresso dos dogmas bafientos, “familistas” e anti-liberdade que ainda são herança do Estado Novo e, como tal, pretenderem impedir tanto a verdadeira autodeterminação dos nossos jovens como uma educação assente no debate, no sentido crítico e na desconstrução de conceitos estereotipados.
Alguns críticos defendem que a disciplina deveria ser opcional, por exemplo como a de Educação Moral e Religiosa. Concorda?
Comparar a Religião e Moral com a educação para a cidadania só se admite por manifesta desonestidade intelectual. Em primeiro lugar, na disciplina de Religião e Moral apenas se leciona a religião católica, o que não se compreende num Estado plural e laico. Ainda se se ensinasse um estudo comparado de todas as religiões ficava mais fácil compreender a utilidade da disciplina. Sendo esta assente na fé de cada um e de cada uma, obviamente tem de ser facultativa. Já a disciplina de cidadania, e basta olhar para os temas e para os programas, não atende a fé, a acreditares ou a opções dogmáticas, mas sim a princípios basilares de formação pessoal, cívica e na possibilidade de dar aos alunos e alunas ferramentas para refletir, pensar, desconstruir de uma forma critica, sem imposições e sem doutrinas. Ensina a aceitação das diversidades, da tolerância, da proteção do ambiente e do respeito pelo próximo. A solução nunca pode ser ocultar a realidade, por isso é uma disciplina fundamental e por isso defendo a sua obrigatoriedade. Declaração de interesses: sou católico, praticante.
Faz sentido que os pais possam evocar objeção de consciência nesta disciplina, considerando os conteúdos lecionados?
Oviamente que não. Repito: os conteúdos programáticos da disciplina de Cidadania não assentam em morais, dogmas ou fé. São temas tão imprescindíveis e importantes como aqueles que são tratados nas disciplinas de Português, História ou Ciências. São factos e não opiniões. Um dos grandes problemas da sociedade (potenciado pelas redes sociais e pelas “caixas de comentários”) é que muita gente opõe opiniões a factos e isso está errado (e é perigoso) de muitas maneiras. Por exemplo, um terraplanista não pode opor a sua opinião de que a terra é plana aos factos comprovados pela ciência de que o nosso planeta é redondo. E esse terraplanista pode invocar a objeção de consciência para o seu filho ou a sua filha não frequentar as aulas de Ciências ou de Geografia? Ou pode alguém muito religioso impedir que os seus filhos não tenham a disciplina de Português quando se der o canto IX dos Lusíadas? Não me parece, sequer, admissível.
A escola pública não pode ter currículos feitos à medida de cada encarregado de educação. Parece haver confusão entre o papel que cabe à escola e o que cabe à família na educação das crianças. A escola deve mostrar a realidade e ensinar, neste caso, os princípios fundamentais de uma sociedade livre, pensante e democrática, apresentando toda a diversidade que existe na sociedade. À família caberá mostrar aos seus educandos a visão que tem do mundo nessas matérias. Só assim estes poderão crescer e pensar de forma autónoma e esclarecida.
Mas faz sentido que dois alunos exemplares possam chumbar o ano por não frequentarem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento?
Estaríamos com esta pergunta se a disciplina em causa fosse a de Português, Matemática ou História? Claro que não. Tomando como exemplo a disciplina de História, podemos e devemos questionar a forma romantizada como é lecionada a parte dos Descobrimentos e da escravatura. Atualmente, esse trabalho crítico é feito por alguns professores, mas sobretudo pelas famílias. Seria legitimo eu, como pai, impedir a presença do meu filho ou da minha filha na disciplina de História invocando objeção de consciência por não concordar com a referida visão romantizada? Além de que, se evitássemos o chumbo de qualquer aluno ou aluna, por violação das regras pré-definidas e comuns a todas as disciplinas não facultativas, estaríamos a abrir precedentes gravíssimos e a prejudicar, em primeiro lugar, os próprios alunos.