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Mitos e enganos da História de Portugal, de Viriato a Salazar

Na História lusa nem tudo o que luz é forçosamente ouro. Três dos mais famosos exemplos, que vão do mito de Viriato aos fundamentos da Batalha de Ourique até à neutralidade de Salazar durante a II Guerra Mundial

Por todo o império francês, de Paris ao Mali ou à Cochinchina, os jovens que tinham a sorte de ir à escola nos princípios do século XX aprendiam que os seus antepassados tinham sido os gauleses, inimigos de César. Nós trocávamos gauleses por lusitanos e Vercingetorix por Viriato. Mas quem foi este pastor heroico dos montes Hermínios (serra da Estrela)? Como referem os historiadores da Faculdade de Letras de Lisboa Amílcar Guerra e Carlos Fabião em ‘Viriato: Genealogia de Um Mito’ (revista “Penélope”, 1992), “o caudilho lusitano foi periodicamente chamado à ribalta da História pátria sempre que se pretendeu robustecer o sentimento nacionalista”. Camões, no Canto I d’“Os Lusíadas”, cita “a fama antiga alcançada na inimiga guerra romana”. Segundo os referidos investigadores, o território dos lusitanos não coincidia com o português. Viriato, literalmente aquele que usa uma víria, ou seja, uma pulseira em ouro, sinal de estatuto nobre, não era da serra da Estrela mas da Andaluzia, ainda que até em Zamora haja uma estátua dele. A ideia de pastor sugere ser originário de alguma região da Meseta onde não houvesse condições para a agricultura. Muitas das suas operações foram na atual província de Sevilha. A cava dita de Viriato, em Viseu, corresponde, pela sua geometria ortogonal e técnica construtiva, a vestígios de um acampamento romano (mais tarde reaproveitado no período islâmico). César combateu, de facto, tribos nos montes Hermínios, mas em 60 a. C., um século depois da morte de Viriato… A história do Estado Novo tinha dificuldade em conciliar o elogio da civilização romana, sobre a qual assenta boa parte da nossa, com a exaltação de um inimigo da romanização. De resto, a apologia de um guerrilheiro que emboscava tropas regulares fazia lembrar cenários incómodos então ocorrendo em África… Quanto aos romanos, as guerras peninsulares levaram-nos a adotar como arma a espada local, curta, de dois gumes, o gladius hispaniensis.

Em 1139 poucas centenas de portugueses derrotaram milhares de mouros, comandados por cinco reis. Santiago, o apóstolo mata-mouros, deu uma ajuda e um anjo mostrou ao príncipe o caminho da vitória. No final, os guerreiros ergueram o jovem Afonso sobre os escudos e proclamaram-no rei, que nem Artur de Camelot. Como narrativa é bonita, mas onde para a verdade histórica? Episódio basilar da afirmação da nacionalidade, legitimação de uma independência arrancada penosamente ao reino de Leão, Ourique começa a ser mitificada logo no século XII pelos cónegos regrantes de Santa Cruz, próximos de Afonso Henriques, e continuará a sê-lo à medida que as descrições da batalha se afastarem do tempo em que esta decorreu. Começa por não haver certeza de que “Ourique” (de resto, um topónimo berbere) se está a falar: Ribatejo, Lisboa ou Alentejo? Como explica Pedro Gomes Barbosa, docente da Faculdade de Letras de Lisboa, se porventura se tratasse da Ourique alentejana, nessa época a região estava desertificada e não seria difícil infiltrar uma força de cavalaria a partir da zona afonsina. O domínio dos almorávidas (guerreiros berberes fundamentalistas que tinham dominado pela força a zona islâmica da Península no século XI e feito incursões nas zonas cristãs) estava em desagregação e não é de excluir que cidades islâmicas preferissem fazer causa comum com Afonso contra os seus senhores. Teria a hoste lusa emboscado forças mouras ou colunas de comerciantes que andassem pela campina e os cinco reis simbolizariam outros tantos ataques de guerrilha? É menos heroico mas mais plausível.