Pouco dinheiro, falta de apoios, muita burocracia e uma indefinição grande sobre o que significa dar tempo para ajudar as comunidades. São os obstáculos com que muitas das associações de assistência social se deparam para fazer o seu trabalho diário. “Têm uma vida muito difícil”, atira a ex-ministra da Saúde Maria de Belém. E aqui as responsabilidades têm de ser partilhadas, porque a culpa não é só do Estado. Torna- -se essencial que as empresas não existam “apenas para criar dinheiro para os acionistas”, mas “também para criar valor social”, aponta. O que ganha ainda mais relevância quando muitas já têm “volumes de negócios superiores a muitos países”. Faz falta esta “visão global” que responda aos condicionalismos e aos extremismos.
“A maior parte das vezes só lhes dão ‘pescadinha de rabo na boca’, que impede esse desenvolvimento do lado social”, acrescenta o deputado do PSD Ricardo Baptista Leite, que lembrou a sua experiência enquanto presidente e fundador de uma associação, para a classificar como “muitas vezes, um tormento. Gastamos metade dos recursos à procura de outros recursos”, revela. Com um alerta para que “não haja medo do mecenato”. Os avisos foram deixados na cerimónia que marcou a atribuição do prémio Ideias que Mudam o Mundo — iniciativa que junta Bayer e Expresso para reconhecer projetos de apoio à comunidade desenvolvidos por associações de utilidade pública —, no edifício do Grupo Impresa e dão conta de uma mudança de paradigma que pode (e deve) servir de exemplo para este universo, numa altura em que a economia social já começa a ter algum peso. A última “Conta Satélite da Economia Social”, divulgada pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social com dados de 2016 do INE (os mais recentes disponíveis), dá conta de um sector composto por mais de 70 mil entidades e que inclui mais de 234 mil empregos.
“É importante haver sempre um triângulo entre empresas, sociedade civil e Estado, mas sempre a olhar para as pessoas”, apontou Helena Canhão. A professora na Escola Nacional de Saúde Pública garantiu que “cada vez se olha mais para a investigação como algo que pode ajudar a sociedade”, sobretudo como parte “de uma resposta que precisa de reunir multidisciplinaridade”. Só assim se tem em conta as “necessidades efetivas da população e da sociedade”, com a certeza de que os “países menos desiguais são os mais felizes”. E a investigadora reforça: “Pessoas a trabalharem juntas. Isso muda o mundo.”
Boas respostas
Já “passámos o tempo de uma sociedade assistencialista”, garante o ex-ministro da Saúde Adalberto Campo Fernandes, para “um Estado que gere os recursos que lhes são emprestados pelas forças motrizes da sociedade”. O que não deve significar um sector público que se demita das suas responsabilidades, defende o antigo governante, mas antes uma entidade que sirva de exemplo e crie condições para todo o tipo de intervenções. “Há que não ter medo da sociedade civil e da atividade empreendedora” para que as pessoas sejam livres “de fazer escolhas. É preciso ter essa coragem e o Estado tem essa obrigação”. Caso das duas ideias premiadas, que se revelaram uma “escolha consensual”, pois “ilustram muito bem o que aqui falamos”. Até porque um melhor apoio social de proximidade resulta em trabalhadores “mais bem inseridos e com maior capacidade económica”. Dito por outras palavras, ficam todos a ganhar.
Ricardo Baptista Leite coloca a tónica no equilíbrio e defende a necessidade de os órgãos governamentais assumirem “o papel de regulador”, sem se colocarem no lugar da sociedade civil, enquanto alerta para que, por vezes, há um “sentimento de que o Estado deve substituir-se a todos”. Os políticos “não têm só papel de não atrapalhar”, têm obrigação de “procurar boas respostas”. Por isso critica quem “só ouve as pessoas para ficar bem nas fotografias” e pede “um papel efetivo na decisão” para quem trabalha nas associações e no ramo da economia social. “O que nós estamos aqui a falar vai além da saúde no sentido clássico, é mais do bem-estar”, garante, e pede uma reorientação das empresas para terem maior “impacto na sociedade”. Se é certo que o investimento social em Portugal representa 6,1% do emprego remunerado e 3% do valor acrescentado bruto da economia nacional, o caminho ainda é longo.
Apostar nesta área é também “fundamental para ter mais saúde mental”, defende Helena Canhão. Maria de Belém lembra, por exemplo, que se trata de um tópico “relevantíssimo”, que “não tem tido os apoios suficientes”. Além do sector privado, as “políticas públicas são indispensáveis para ajudar a traçar o caminho”, quando já é percetível o impacto provocado pela “maneira como desprezamos as emoções”. Ricardo Baptista Leite destaca a necessidade de “mudar a nossa filosofia” como consequência dos indicadores demográficos, que dão conta do envelhecimento constante e dos novos perigos para a saúde mental. Continuar a apoiar o trabalho destas associações junto das comunidades é visto como forma de garantir que a mudança está a ser introduzida passo a passo, caso a caso, para que a partir das comunidades possa crescer. “Para os mais novos, uma nota de otimismo”, deixa Adalberto Campos Fernandes. “Só tenho pena de não ter agora dez anos, porque tenho a certeza de que o mundo vai ser muito melhor.”
€50 mil para premiar a responsabilidade social
O prémio Ideias que Mudam o Mundo é uma iniciativa da Bayer, que conta com o apoio do Expresso, e visa financiar projetos originais e inovadores de apoio à comunidade desenvolvidos por associações de utilidade pública. Desde a primeira edição, em 2019, que o foco tem sido as candidaturas que suportem inovação nas áreas da saúde e educação, que sejam benéficas para a comunidade onde se inserem e que deem resposta, por exemplo, a um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Coube por isso ao júri, composto por Maria de Belém Roseira, Helena Canhão, Adalberto Campos Fernandes e Ricardo Baptista Leite, a tarefa de escolher os dois vencedores a partir das 34 candidaturas que o prémio recebeu este ano. Os colaboradores da Bayer tiveram depois oportunidade de escolher o vencedor através de um voto interno e são também eles que definem qual dos dois projetos recebe uma doação extra de €5 mil, além dos €25 mil para o primeiro classificado e €20 mil para o segundo. No total, são €50 mil para que estas ideias possam ter ainda maior impacto.
O que fazem as duas associações vencedoras
Ginásio Cerebral Comunitário
Cátia Gameiro e Carla Pombo são as responsáveis pelo projeto que garantiu o primeiro lugar e com o qual visam promover um “envelhecimento social”. O trabalho é feito na Casa de Saúde da Idanha — Instituto Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus a partir de atividades de estimulação com recurso às novas tecnologias. Apostam na “prevenção e em ir ao encontro dos seniores” com aulas de ginástica cerebral gratuitas e bissemanais. O dinheiro do prémio irá ser utilizado para a aquisição de um robô, do Instituto de Sistemas e Robótica do Instituto Superior Técnico, que permite conjugar exercícios mentais e físicos com realidade aumentada.
Rede Solidária do Medicamento
O Programa Abem “tem como objetivo permitir o acesso aos medicamentos prescritos a quem não tem capacidade financeira para os adquirir, cobrindo o valor não comparticipado”, explica Joana Moreira Carvalho, da Associação Dignitude. A rede surgiu da constatação de que “em cada dez portugueses há um que não tem dinheiro para comprar medicamentos”. O programa vai no seu quarto ano e engloba mais de 12 mil pessoas, que “têm acesso contínuo e seguro” devido ao trabalho desenvolvido. “Por cada euro investido” o programa “teve um impacto social valorizado em €7,8” e com o prémio financeiro do segundo lugar o objetivo é agora chegar aos “20 mil beneficiários”.
Textos originalmente publicados no Expresso de 15 de fevereiro de 2020