Voluntários das organizações não governamentais Médicos do Mundo e Casa, que dão apoio a sem-abrigo, cruzaram-se algumas vezes com Sara nos últimos meses e desconfiaram, pelo volume da barriga, que estivesse grávida, mas a jovem de 22 anos negou sempre e recusou fazer um teste de gravidez.
"Vimo-la pela primeira vez a 18 de setembro e, na altura, não reparámos na barriga. Nas semanas seguintes voltámos várias vezes ao local para ir ao seu encontro, pelo facto de ser muito jovem e estar há pouco tempo na rua, mas nunca a encontrámos. Só voltámos a vê-la a 7 de outubro e aí detetámos um aumento do volume abdominal. Pedimos-lhe que fizesse um teste de gravidez, mas a jovem recusou e negou estar grávida. Disse que estava apenas obstipada e que até estava menstruada naquele momento", conta Joana Marques, da associação Médicos do Mundo.
A ONG aceitou as explicações e não alertou nenhuma outra associação para a suspeita da gravidez, nem sequer a Crescer, que coordena a intervenção junto dos sem-abrigo na zona de Santa Apolónia, em Lisboa.
Apesar de terem ido várias vezes à zona ao longo do mês seguinte, os voluntários da Médicos do Mundo nunca mais encontraram Sara. Só voltaram a cruzar-se com ela na passada quarta-feira, 6 de novembro, um dia depois de esta ter tido o bebé sozinha junto aos contentores do lixo onde abandonou o recém-nascido no ecoponto, sem qualquer agasalho e ainda com vestígios de sangue do parto.
Apesar de já estar a circular a notícia da descoberta do bebé, os voluntários não associaram o caso a Sara. Nesse dia, pelas 23h00, notaram um ligeiro volume abdominal e voltaram a insistir com ela para que fizesse o teste. Nessa ocasião, a jovem admitiu que não tinha o período há dois meses e, pela primeira vez, aceitou fazer um exame de urina, que deu positivo para a gravidez.
"Aí, contactámos a Maternidade Alfredo da Costa, que estava disponível para fazer exames no dia seguinte, mas a utente afirmou que não tinha disponibilidade para ir lá na quinta-feira, alegando ter um compromisso familiar. Ficámos de voltar ao local na sexta para iniciar o acompanhamento da gravidez", conta Joana Marques.
Mentalidade "muito infantil"
Carlos Madeira, técnico da "Casa", conta que falou várias vezes com Sara e que a rapariga se encontrava sinalizada como sem-abrigo por aquela associação não governamental. A "Casa" costuma ir àquele local com frequência durante a noite dar refeições e roupa aos cerca de 50 sem-abrigos que estão ali acampados, junto ao terminal do porto de Lisboa.
Antes do verão, notou que a jovem de 22 anos estava com uma pequena barriga e perguntou-lhe se ela tinha engravidado. "De um modo muito infantil, perguntou-me se eu estava a brincar e garantiu-me que não. ela estava sempre a rir-se, nunca levava nada a sério. Tinha uma mentalidade muito infantil." Carlos Madeira não tinha razões para duvidar de Sara tendo admitido na altura que ela poderia apenas ter engordado um pouco.
Durante as conversas com esta jovem, "que fisicamente e mentalmente parecia ter 15 anos", esta contou-lhe que tinha vindo de Cabo Verde para Portugal com o objetivo de estudar. Começou por partilhar um quarto com uma amiga, na Amadora. "Mas a amiga arranjou um namorado e Sara acabou por sair de casa dela", revela.
Sara acabou na rua há alguns meses onde conheceu Sidney, companheiro mais velho com quem partilhava uma tenda em Santa Apolónia.
Carlos Madeira também conhece Sidney que garante ser uma "figura protetora" sobre a jovem. Em geral, este sem-abrigo fala sempre muito bem com os voluntários e técnicos das ONG que dão apoio em Santa Apolónia. Mas na quarta-feira passada, um dia depois de Sara ter colocado o bebé no ecoponto, Sidney preferiu não sair da tenda nem falar com os técnicos da Associação Casa.
Outro facto estranho? Carlos Madeira revela que durante os últimos dois meses não avistou Sara na rua. Sempre julgou que a jovem pudesse ter refeito a vida e não que se pudesse ter estado a esconder das pessoas que a apoiavam com receio de descobrirem a sua gravidez. "É uma história condenável e não vou desculpabilizar o seu ato. Mas quem conhece Sara percebe que ela fez isto muito pela sua imaturidade. E pode nem ter percebido muito bem o que fez."
Longe dos radares
Tal como o Expresso escreveu este sábado, as duas das principais ONG que dão apoio aos mais desfavorecidos naquela zona de Lisboa, a Crescer (que coordena a intervenção psicossocial naquela zona de Lisboa) e a Comunidade Vida e Paz (que diariamente distribui sandes e sumos àquela população) nunca deram pela presença de Sara na rua.
“Quando é sinalizada uma criança ou uma mulher grávida a viver na rua é de imediato acionada a Segurança Social, os serviços de saúde e a polícia. E são retiradas de lá”, explicou Henrique Joaquim, presidente da Vida e Paz.
Na última sexta-feira, três dias depois de ter colocado o recém-nascido no ecoponto, a jovem foi presente a um juiz para primeiro interrogatório e ficou em prisão preventiva acusada de tentativa de homicídio qualificado. Sidney foi ouvido no dia seguinte pela Polícia Judiciária, garantido que desconhecia que Sara estivesse grávida. Está em liberdade.