Sérgio Valente terminou o dia 25 de abril de 1974 com um penso colado à testa. Passara o dia às voltas no Porto, tentando perceber para que lado caía a revolução. Como ele, com o passar das horas, cada vez mais portuenses rumavam à Avenida dos Aliados para — perante as informações de que, em Lisboa, o golpe militar estava no bom caminho — celebrarem a conquista da liberdade em conjunto.
“A movimentação era cada vez maior. Então o comandante da polícia mandou carregar sobre as pessoas que estavam a comemorar a liberdade”, recorda ao Expresso este fotógrafo portuense, então com 32 anos. “Vi um polícia a bater num jovem e peguei numa pedra para tentar atingi-lo, mas surgiu outro agente sem eu contar. Deu-me uma bastonada que me abriu a testa. Muitas vezes se pergunta: Onde é que tu estavas no 25 de Abril? Eu costumo responder que estava a levar porrada. Nem no dia da liberdade me pouparam.”
Aos 77 anos, Sérgio recorda um dia “muito confuso”, com algumas montras e cabines telefónicas partidas na Avenida dos Aliados. Ele despertara para o que se estava a passar de manhã quando, em casa, recebeu um telefonema da mulher, que trabalhava na cooperativa livreira Unicepe. “Disse-me que ligasse o rádio e assim fiz. Comecei a ouvir a Luísa Basto a cantar músicas que eu só ouvia nas rádios clandestinas.”
Não descansou então enquanto não saiu para a rua tentar perceber o que se passava junto dos militares posicionados na Ponte D. Luís e depois junto ao Aeroporto de Pedras Rubras (hoje, Francisco Sá Carneiro).
Sérgio guarda poucas fotos do dia 25 de Abril. “Não estava preocupado em tirar fotografias. Eu era ativista, mais do que fotógrafo. Naquele momento, queria que o fascismo caísse e não voltasse mais. Estava há tanto tempo à espera da liberdade que queria era vive-la com as pessoas.”
Consolidada a revolução, a festa na Invicta fez-se uma semana depois, com mais de 300 mil pessoas — “sem exagero”, diz o fotógrafo —, apinhados nos Aliados a celebrar o primeiro 1º de Maio em liberdade.
A ocorrência de um golpe antirregime não era uma surpresa absoluta para ele, que vinha contabilizando alguns indícios de que algo poderia estar para acontecer. Dias antes da revolução, no Grupo dos Modestos — uma companhia de teatro onde despontavam atores como Júlio Cardoso e Estrela Novais —, um amigo ligado ao Partido Comunista deixara-o desconfiado. Ao despedirem-se, aconselhou a que evitassem encontrar-se nos dias seguintes. Sérgio foi para casa a matutar no assunto.
Não havia muito tempo, num jantar de homenagem a Óscar Lopes — opositor ao Estado Novo que viria a dirigir a Faculdade de Letras do Porto entre 1974 e 1976 —, tinha havido intervenções sobre o regresso dos exilados ao país, incluindo de Álvaro Cunhal. “Quando ouvi aquele nome até olhei para o lado. Algo não estava bem. Era quase impossível falar-se de Álvaro Cunhal. Devia estar para acontecer alguma coisa...”
Aveiro cercado pela polícia durante cinco dias
Quando estalou o 25 de Abril, Sérgio já levava metade da sua vida dedicada à militância antirregime. Desde 1964, estava oficialmente ligado ao PCP. Toda essa experiência permitia-lhe constatar que, no início dos anos 1970, Portugal não era o mesmo país resignado e obediente de décadas anteriores.
Entre 4 e 8 de abril de 1973, em Aveiro, o 3º Congresso da Oposição Democrática já dera alguns sinais de que o povo perdera o medo. “Por tudo o que ali foi dito, pressentimos que algo estava para acontecer.” O portuense assistiu a tudo na primeira fila, ora fotografando os trabalhos no interior do Teatro Avenida, ora observando o que se passava nas ruas, com a PSP a cercar a cidade para dificultar a chegada de opositores e, com isso, a gerar um entusiasmo crescente. “Aveiro foi um sinal.”
Sérgio Valente ganhava a vida a tirar fotografias em eventos sociais. Chegara ao meio pela mão de um tio, fotógrafo, que assim o resgatou da vida na construção civil. “A minha entrega à luta era de tal ordem que, muitas vezes, em momentos cruciais, esquecia a fotografia. Eu era mais ativista do que fotógrafo”, admite. “Havia momentos em que eram necessárias pessoas com alguma coragem...”
No Portugal de Salazar, quatro pessoas a conversar na rua podia ser considerado um ajuntamento. Para quem militava na clandestinidade, o 1º de Maio era sempre aproveitado para ações de insubordinação. “As células sabiam que haveria alguém que, em determinada hora e local, iria interromper o trânsito e acenar uma bandeira. Não está a ver o Sérgio Valente a fazer reportagem com a máquina fotográfica numa situação dessas...”
O batismo com Humberto Delgado
Sérgio teve os seus primeiros contactos com a oposição ao regime aos 18 anos, através de um grupo de jovens afetos ao PCP que parava no café Estrela d’Ouro, na Rua da Fábrica. Dois anos antes, o Porto vivera um episódio histórico que lhe confirmou de que lado desta luta ele queria estar.
A 14 de maio de 1958, Humberto Delgado, rosto maior da oposição a Salazar, chegou à Estação de São Bento e foi recebido por uma multidão estimada em 200 mil pessoas. “Foi o meu batismo”, recorda. “Muita polícia, a GNR a cavalo, muita bastonada. Perguntei quem era e disseram-me que era um general que se opunha ao Salazar. Nunca mais o larguei. Entrei de costas no Coliseu [onde o “general sem medo”, que se candidatava às presidenciais, fez um comício] e aos empurrões. Foi o meu despertar. A partir daí nunca mais parei.”
A sua coragem fe-lo dar nas vistas nos meandros da clandestinidade. A seu favor, tinha também um certo feitio rebelde e uma revolta interior que o acompanhava desde tenra idade quando vivia na Foz Velha, numa casa sem quartos onde chegaram a viver dez pessoas: os pais, três irmãos, duas irmãs e um casal de primos.
Nos calabouços da PIDE
A sua entrega à luta colocou-o sob os holofotes da PIDE (DGS a partir de 1969). Por três vezes — 1969, 1971 e 1973 — foi parar aos calabouços, na Rua do Heroismo, um edifício que hoje alberga o Museu Militar do Porto. “Quando eu passava diante daquele prédio tenebroso, tentava imaginar o que eles faziam lá dentro. Lia muita coisa sobre as torturas, as humilhações e pensava: ‘E se um dia eu caio aqui?’ Criava-me arrepios. Até ao dia em que isso aconteceu mesmo. Dei comigo a pensar: ‘Estou cá dentro. O que é que me vão fazer?’”
Da primeira vez que foi preso, preparava-se para participar na manifestação proibida do 1º de Maio de 1969, na Avenida dos Aliados. “Junto à Igreja dos Congregados, havia um batalhão de polícias pronto a avançar. Um deles pegou no cacetete e as pessoas começaram a atropelar-se umas às outras. Corri atrás dele e mandei-lhe um pontapé no traseiro. Nunca mais me largou.” Sérgio acabou encurralado e apanhou uma bastonada na cabeça. O ferimento ficaria visível nas retratos que lhe tiraram na PIDE, para onde foi levado e ficou preso cerca de uma semana.
Da segunda vez, em 1971, foi tudo muito mais doloroso. “Foi uma prisão programada e premeditada. E foi muito violenta. Fizeram de tudo para me provocar. Maltrataram-me, aplicaram-me a tortura do sono, bateram-me até quase me matarem, levei socos na garganta. Vi a morte à minha frente.”
Sérgio foi preso na sequência de uma longa noite de trabalho, no seu estúdio de fotografia, num segundo andar da Rua de Entreparedes. Era ali que pernoitava com a mulher e duas crianças sempre que o trabalho se prolongava. Na noite de 22 de julho de 1971, tinha estado a tratar de fotos tiradas a turistas numas caves do Vinho do Porto.
Na manhã seguinte, a PIDE intercetou-o na rua. “Queriam revistar o estúdio. Procuravam material subversivo e também uns cartões relacionados com uma excursão que um grupo planeava a Peniche. A ideia era cantarmos canções de intervenção junto à prisão para que os presos soubessem que a luta continuava cá fora.”
Com os PIDEs dentro do estúdio, o casal Valente foi puxando da criatividade para despista-los e livrarem-se de material que os pudesse incriminar. O emblema do 50º aniversário do PCP dentro da carteira de Laura, também ela uma combatente antifascista, ligada ao Movimento Democrático de Mulheres. O envelope com jornais proibidos endereçado a RAF (“Rafael” era o pseudónimo de Sérgio). Negativos e fotografias incómodas, como as de José Dias Coelho e Catarina Eufémia, assassinados pela PIDE e pela GNR, respetivamente.
Do estúdio, onde nada de relevante encontraram, os agentes quiseram inspecionar a casa onde viviam. Ali, Sérgio e Laura seriam denunciados por “uns papeis encontrados no meio da roupa”. Foram levados para interrogatório, mas só ela regressaria a casa, não sem antes protestar alto e bom som contra a detenção do marido. Viria a ser julgada e “condenada a seis dias de multa a 30$00 diários de indemnização à DGS”.
O caso foi noticiado a 18 de dezembro de 1971, no “Diário de Lisboa”, com o título “Senhora condenada por injúrias à DGS”. Para a pena contribuiu também o comportamento de Laura durante uma visita posterior ao marido, acompanhada por uns parentes. “Eles entraram, ela não, porque, como lhe disseram, estava proibida de o fazer durante trinta dias já que tivera mau comportamento da primeira vez que ali estivera”, escreve o jornal. “A ré, irritada, teria proferido palavras injuriosas para a corporação policial, quando a fecharam numa sala, tendo quebrado os vidros da porta. Um agente tentou faze-la sair o que conseguiu após grande esforço.”
Da segunda vez, Sérgio ficaria preso cerca de 20 dias. Inicialmente, não conseguia dormir, atormentado com o que lhe podia acontecer. “Lembrava-me muito do que se dizia no partido: ‘Quanto menos soubermos, melhor’. Mas eu sabia muita coisa...”
Depois continuou sem dormir, mas por outras razões. Tiraram-lhe a cama da cela e começaram a aplicar-lhe a tortura do sono. Sem nada revelar, foi resistindo ao cansaço, mas não o libertavam. Em 1960, Sérgio fora mandado embora da tropa após simular ataques de epilepsia. “Eu não tinha medo da guerra, até porque a minha especialidade era das melhores que havia na tropa, Foto-Cine. Era uma questão ideológica, aquilo não era nosso...”
Onze anos depois, na prisão, tentou voltar a encenar, desta feita fingindo ter alucinações. Conseguiu voltar a ter cama na cela. “Sobrevivi. E portei-me bem, que era o que eu queria: não falei. Saí de consciência tranquila. Posso ter abandonado os aparelhos partidários, mas não posso ser acusado de alguma vez ter traído alguém.”
A terceira detenção, assinada pelo inspetor da PIDE Rosa Casaco, aconteceu em 1973, de 30 de abril para 1 de maio. "Acharam que eu podia ser um dos cabecilhas de uma possível manifestação. Pela primeira vez estive numa cela coletiva, éramos uns oito ou nove, quase todos conhecidos uns dos outros.”
Muitos desses rostos estão homenageados nas fotos do portuense, que já deram origem a dois livros: “Sérgio Valente — Um fotógrafo na Oposição” (Edições Afrontamento, 2010) e “Sérgio Valente — Um fotógrafo na Revolução” (Edições Afrontamento, 2015). A partir desta quinta-feira, podem também ser apreciadas no átrio da Câmara Municipal do Porto, numa mostra intitulada “A Substância do Tempo — 25 fotografias de Sérgio Valente, 45 anos depois do 25 de Abril”.
Exposta estará também a velha Rolleicord, a sua “arma de guerra” com que tantas vezes registou como o Norte resistiu a Salazar. E também de como a revolução se fez de homens e mulheres valentes.