Se 2017 ficou marcado por falhas de serviços do Estado na resposta aos incêndios, o ano agora a terminar contribui igualmente para o negro cadastro de ocorrências em que fica por garantir a segurança de cidadãos no espaço público. Em Borba houve muito menos vítimas mortais do que nos fogos, é um facto. Mas há a agravante de a derrocada da antiga estrada nacional (EN) 255 ser um acidente com local marcado. Só faltava saber a hora.
E ela chegou às 15h45 do dia 19 de novembro, quando caiu um troço de 100 metros da via. O deslizamento de 150 mil toneladas de pedras e lamas para dentro das pedreiras provocou a morte de cinco pessoas. As operações de resgate foram demoradas (13 dias) e envolveram meios numerosos — chegaram a ser 402 viaturas e 651 operacionais.
A empreitada complexa foi, todavia, mais fácil e mais conclusiva do que saber com exatidão como foi possível a queda da estrada, após ter havido alertas expressos para os riscos. Pelo menos em dezembro de 2014, um e-mail enviado pelo então diretor regional de Economia do Alentejo, João Filipe de Jesus, ao gabinete do secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, comprova que o “perigo de colapso” já fora detetado.
No memorando em causa (uma sinopse do diretor regional, a qual tem em anexo um ponto da situação feito pelos seus serviços, com um powerpoint que identifica riscos e aponta soluções), as chamadas de atenção são claras: “[Existe] o risco de deslizamento e queda parcial do talude acima dos 50 metros de profundidade”; “O colapso poderá colocar em perigo a segurança dos trabalhadores das pedreiras e a própria circulação de viaturas ligeiras e pesadas”; ou “A possibilidade de colapso dos taludes a qualquer momento (...) implica a tomada de soluções adequadas, nomeadamente o eventual encerramento da estrada.”
GALAMBA DIZ QUE GOVERNO PSD/CDS IGNOROU O ALERTA DE COLAPSO
Os avisos deviam ter feito soar o alarme, mas nada sucedeu. A Câmara de Borba era a entidade competente para decretar o fecho da estrada, uma via municipal desde 2005. Mas a autarquia, que tinha conhecimento de tudo, ficou de braços cruzados. Também empresários da região, que em 2014 alertaram para os riscos, não fizeram desde então qualquer diligência pública a respeito do assunto.
Já em serviços e organismos da Administração Central (por entre os quais a informação circulou no final de 2014), consumada a tragédia, as respostas mais ouvidas de atuais e de antigos responsáveis técnicos e políticos foram: “Não sabia”; e “não tinha conhecimento”.
Por isso, percorrer os trilhos do memorando é vaguear num labirinto com os mesmos caminhos sinuosos e de aparência precária de algumas das imagens aéreas das pedreiras de Borba (como a fotografia destas páginas).
Há quatro anos, a 1 de dezembro, a correspondência foi recebida no gabinete de Artur Trindade (sem que o governante o tenha lido, garantiu o próprio após o acidente). Três dias depois foi enviada pela sua chefe de gabinete à Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). A 5 de dezembro, o então diretor-geral, em vias de deixar o cargo no final desse mês, remeteu o documento a um dos serviços dele dependente, a Direção de Serviços de Minas e Pedreiras (DSMP), “para conhecimento e [devidos] efeitos”. É aqui que se perde o rasto ao memorando, que terá sido depois arquivado por uma funcionária da DSMP, sem ter sido produzido algum despacho sobre o mesmo.
Como o Expresso já escreveu, o então diretor-geral, Pedro Cabral, disse “não se recordar” de ter falado do caso com o secretário de Estado, nem com o seu sucessor. Este, Carlos Almeida, garantiu que “nunca” teve “conhecimento do assunto”. O atual Governo nunca comentou os meandros deste processo, até esta quinta-feira. As hostilidades foram agora abertas pelo secretário de Estado da Energia, João Galamba, que acusou o seu antecessor no cargo em 2014, Artur Trindade, de ter “ignorado” o alerta. Em declarações à Lusa, Galamba atribui mesmo ao Executivo do PSD/CDS uma vontade expressa nesse sentido: “Entendeu-se que não cabia à secretaria de Estado e ao Governo anterior ter qualquer iniciativa ou diligência sobre essa matéria.”
UMA LINHA NEGRA MARCADA NO MAPA
Se estes passos já parecem complicados, o seu enquadramento vem baralhar mais as coisas. Tudo se passou ao sabor de um processo de transferência de competências entre organismos da Administração Central, com indefinições e compassos de espera inerentes. O que potenciou as inércias gerais na resposta a um relatório com suficientes sinais vermelhos para ser levado muito a sério.
Com efeito, as direções regionais de Economia, em 2014 com a tutela de minas e pedreiras (mas sem poder para fechar a estrada), encontravam-se em processo de extinção, que foi desencadeado em janeiro desse ano. Assim, em dezembro, quando reporta a situação ao gabinete do secretário de Estado, o DRE do Alentejo fá-lo por conta de competências que irão passar para a DGEG (e que só seriam consagradas em junho de 2015). E a DGEG, mesmo que quisesse atuar, não poderia fazê-lo no imediato.
Com as conclusões da Inspeção do Ambiente (cujos resultados deverão ser conhecidos no início de janeiro) e as investigações do Ministério Público, muitas respostas ainda por dar serão certamente encontradas. A principal é saber como foi possível a informação perder-se na via sacra entre vários serviços, e quem são os responsáveis que deviam ter agido e não o fizeram. Numa primeira leitura, juristas já ouvidos pelo Expresso foram perentórios na avaliação do caso. Para Pedro Costa Gonçalves, professor da Universidade de Coimbra, “uma vez recebida pelos serviços, a informação era autoexplicativa quanto à exigência de atuação operacional imediata”.
Já Paulo Otero, outro especialista em Direito Administrativo, considerou que tanto o ex-secretário de Estado como a chefe de gabinete “podem ser responsabilizados criminalmente por conduta omissiva, porque foram alertados”. Para Otero, professor da Universidade de Lisboa, Borba “é mais grave do que Pedrógão, pois Pedrógão não foi previsível. E aqui o risco estava identificado”.
Ao contrário dos incêndios de 2017, quando ninguém podia antever os locais a precisar de socorro, na antiga Estrada Real que leva ao Paço Ducal de Vila Viçosa tudo estava mapeado. Até com o rigor de coordenadas GPS: uma linha negra entre os quilómetros 1,3 e 1,9 da antiga EN255.