Sociedade

“Temos genes neandertais mas estão a diminuir”

João Zilhão, arqueólogo e professor da Universidade de Barcelona

JOÃO CARLOS SANTOS

Fez esta semana duas décadas que foi descoberto, em Leiria, o esqueleto da criança do Lapedo, com 29 mil anos, que revelou pela primeira vez a existência de cruzamentos entre neandertais e Homo sapiens. João Zilhão, o principal cientista envolvido no processo, faz um balanço da investigação do que é realmente ser humano.

O que tem de único a descoberta do esqueleto da criança do Lapedo?
Vinte anos depois já não é único, é sobretudo um marco histórico num debate que durou mais de 150 anos. É a questão de saber se a Humanidade atual é o resultado de um processo de evolução darwinista, com modificações a nível morfológico, cultural, ou se no passado esteve constituída por uma multiplicidade de espécies distintas e atualmente todos os seres humanos descendem de uma única dessas espécies, que se teria diferenciado há cerca de 250 mil anos no continente africano. E que por razões de superioridade cognitiva, tecnológica, demográfica ou outra, acabou por se expandir na competição com as outras espécies.

Esta tese pertence definitivamente ao passado?
Sim. Claro que os humanos atuais são muito mais parecidos uns com os outros do que há 150 ou 250 mil anos, porque as populações eram então muito mais pequenas e isoladas do que hoje e, portanto, com possibilidade e tempo de divergirem por isolamento e de terem características próprias, mas sem que se chegassem a diferenciar como espécie.

Não eram espécies diferentes.
Eram a mesma espécie que se foi transformando ao longo do tempo. A tese hoje consensual é que os neandertais eram diferentes dos seus contemporâneos africanos, mas a diferença era uma questão de quantidade e não de qualidade, exacerbada porque o registo fóssil é muito parcial e descontínuo. A capacidade craniana dos neandertais é igual ou até superior à dos africanos seus contemporâneos, tal como o grau de desenvolvimento tecnológico, cultural e social. Houve uma miscigenação e as populações atuais não são neandertais, mas mais parecidas com os africanos da época por causa da lei dos números. Os primeiros eram 20 ou 30 mil enquanto no continente africano seriam pelo menos 100 vezes mais. A população mais pequena foi-se diluindo na maior.

A criança do Lapedo é, assim, a primeira prova da miscigenação?
Quando a criança do Lapedo foi descoberta em 1998, a equipa que a estudou detetou na anatomia do esqueleto sinais claros de que pertencia a uma população descendente de um processo de miscigenação à época do contacto, uns milhares de anos antes. É, assim, a primeira prova material a nível mundial, do ponto de vista paleontológico e morfológico, que mostra este processo. Depois, em 2004, a mesma equipa encontrou na Roménia uma situação semelhante: partes de um esqueleto com 40 mil anos que apresentam uma combinação de traços característicos neandertais e modernos. E há quatro anos, ao ser sequenciado o genoma completo, descobriu-se que tinha carateres neandertais, tal como a criança do Lapedo, cujo genoma tinha sido sequenciado em 2010. Um dos seus antepassados, ao nível de avô ou bisavô, tinha sido neandertal puro. Os geneticistas acabaram mais tarde por chegar à mesma conclusão do que nós na paleontologia e arqueologia.

Qual é o consenso atual?
É o de que as populações na Europa e na Ásia têm todas uma componente genética de origem neandertal em 2% a 4%. E que essa componente, como é demonstrado por estudos feitos nos últimos anos sobre fósseis desde há 40 mil anos, tem vindo a diminuir ao longo do tempo na Europa, conforme a previsão do modelo de assimilação que a nossa equipa defendeu a partir da descoberta da criança do Lapedo. Na altura foi editorial de “The New York Times” e primeira página em jornais do mundo inteiro.

Era menina ou menino?
Não sabemos. Do ponto de vista arqueológico, a criança continua a ter interesse em aspetos que a biologia do esqueleto não resolve, como o sexo. Enviámos amostras de ADN para serem analisadas e vamos ter resultados em janeiro de 2019.

E a causa da sua morte aos 4/5 anos, atendendo a que os ossos não revelam patologias?
Também não sabemos. É o chamado paradoxo osteológico. Há muitas doenças que não deixam marcas no esqueleto e outras que deixam mas não são fatais. As marcas significam precisamente que a pessoa sobreviveu a essas doenças.

O que é o ser humano?
É o produto de 2,5 milhões de anos de evolução, que não é só biológica mas, nos últimos 500 mil anos, pelo menos, um processo de coevolução em que biologia e cultura interagem. Muitas diferenças entre as pessoas de hoje e os neandertais estão relacionadas com a robusticidade do esqueleto. Por isso, há características dos neandertais que se encontram hoje nos atletas de alta competição. O que aconteceu com a Humanidade nos últimos 500 mil anos, e mais aceleradamente nos últimos dez mil, é a acumulação de conhecimento sobre o meio, desenvolvimento de tecnologias e aumento demográfico — do tamanho do cérebro coletivo — que fez com que pudéssemos prescindir da força física de que necessitávamos. Os esqueletos tornaram-se mais finos, somos mais leves e precisamos de menos calorias. Mas a capacidade básica para pensar como nós pensamos é muito antiga na evolução humana.

JOÃO CARLOS ZILHÃO

Arqueólogo, 61 anos, é professor catedrático de investigação do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados (ICREA) na Universidade de Barcelona, professor catedrático honorário da Universidade de Lisboa e investigador honorário da Universidade de Bristol. Tem mais de 300 artigos científicos publicados