Já sentadas nas cadeiras altas que dificultam a vida aos mais velhos, duas jovens irmãs esperam o pequeno-almoço e trocam algumas impressões. A mais pequena é a mais viva. As montras estão já muito despidas, nota. O calor naquela zona da sala, perto da casa de banho onde outrora se pagava 50 cêntimos para aliviar vontades, estava quase insuportável. “Hoje é o último dia, se calhar já nem têm ar condicionado…”, atira.
Esta sexta-feira assinala-se o último dia da Pastelaria Suíça, no Rossio, no coração de Lisboa. Esta casa, quase centenária, foi fundada em março de 1922 por Isidro Lopes e Raul de Moura, com um capital social de 300 contos (equivalente a 1.500 euros). No papel chamava-se “Casa Suissa, Lda”.
No décimo dia de março deste ano ficou a saber-se o destino desta e de outras casas importantes da Lisboa com memória. O quarteirão onde está inserida a Pastelaria Suíça foi vendido no final de fevereiro à empresa espanhola Mabel Capital, onde Rafael Nadal, um dos melhores tenistas da história, tem uma participação. O negócio foi concluído por 62 milhões de euros.
O Rossio não é o mesmo de antes. Nem Lisboa. Muito menos é o mundo, que numa altura da sua história empurrou muitos refugiados para a capital lisboeta. “A Pastelaria Suíça, banhada pelo esplendoroso sol, acolheu gentes fugitivas da Europa Central”, explica-se assim a própria pastelaria no site oficial, numa alusão à Segunda Guerra Mundial.
Nesta manhã de sexta-feira a esplanada estava a meio gás, com a larguíssima maioria dos lugares ocupada por estrangeiros. Um grupo numeroso de britânicos, com grandes corpanzins e cheios de tatuagens, ia devorando o almoço a horas de pequeno-almoço enquanto chegavam cervejas atrás de cervejas.
Possivelmente não sabiam que este espaço fecha hoje. Provavelmente não sonhavam que em tempos idos sentaram-se ali nomes importantes como Maria Callas, quando veio atuar no São Carlos, em março de 1958, Ted Kennedy ou Orson Welles. As cervejas continuavam a ir e vir. Os clientes de sempre e os estreantes também. Parecia um dia normal.
Lá dentro, ao lado de um placard eletrónico que diz quanto custam os produtos da casa, está Odete, a ouvir os caprichos e pecados de cada cliente. Assim o exige o pré-pagamento. “Sim, as pessoas vêm falar no último dia… Fico triste, muito triste. É que são 41 anos aqui”, desabafa. O sorriso é terno, o tom da voz é raso como a alegria, mal se ouve. Há alguma derrota naquele jeito. O último dia de 41 anos: são, com pouco rigor na contagem, quase 15 mil dias a servir as pessoas de sempre e as de nunca.
“Sempre vivi em Lisboa”, continua Odete. “Vai ser um dia muito longo. Mas, enfim, é assim a vida.” Um casal espanhol que se esforça para falar português interrompe o desafogo. “Uma garrafa de água e dois pastéis de nata.”
Vai tudo acontecendo ao mesmo tempo. Uns entram para tirar fotografias. Outros chegam para o café habitual do dia. Há quem faça perguntas com respostas que já sabe. Os empregados que se conhecem de ginjeira trocam piadas. O humor está de boa saúde. Menos do outro lado do balcão, onde moram duas senhoras. Apesar do serviço impecável, o rosto revela o desgosto. “É triste, é triste”, diz uma delas a duas clientes que se lamentam.
Não está longe de uma cerimónia. Quem chega, chega para carimbar a última vez e verbalizar o adeus. Sente-se nostalgia. Desejam-se felicidades e sortes. Encolhem-se ombros. Trinca-se o que resta do bolo e dá-se o último gole do café. É quase uma metáfora deste derradeiro dia.
Os pastéis de nata são famosos. Tal como o bolo-rei e o croissant, que, segundo a casa, foi ela própria a introduzir em Portugal. E, depois, há o duchesse. “É o número 1”, diz a uma TV Otávio, um empregado com muitos anos de casa. “Há 50 anos que vêm aqui pessoas por causa disso.” Atrás dele, está uma cliente a antecipar as saudades. Afinal, “são décadas” a visitar aquele lugar. “Vim comer o último duchesse.”
O cenário que envolve a histórica pastelaria não é encantador, com muitos andaimes e vários cartazes a comunicar o andamento de obras. E, segundo revelou em março o ex-dono, a Sociedade Hoteleira Seoane, essas obras vão continuar, sendo agora da responsabilidade do novo proprietário. Foi a CM de Lisboa que obrigou a esses trabalhos, para acautelar situações de segurança do prédio.
O futuro é incerto para esta casa quase centenária. De acordo com o jornal “Público”, na carta enviada pelo dono do estabelecimento à câmara no primeiro trimestre do ano anunciava-se o fecho da pastelaria “num futuro próximo”, deixando uma ressalva: “Pelo menos, no espaço que agora ocupa”.
Na esplanada continuam a morar muitos mais estrangeiros. Alguns transeuntes usam as duas portas (viradas para o largo do Rossio e para a Praça da Figueira) como se a pastelaria fosse um corredor para poupar tempo. Odete, de 68 anos, continua a dar conversa e troco aos clientes, mas custa-lhe falar. “Há quem esteja pior do que eu”, diz, referindo-se aos mais jovens que ali trabalham. “Agora vou ficar em casa, a cuidar dos meus netos. Tenho dois.” Conformada, recorda que há 41 anos a pastelaria não tinha aquela dimensão e que era bastante elitista. “Era só aquele bocadinho ali”, aponta para o vazio. “Foi a minha segunda casa…”