Sociedade

Cesina Bermudes, pioneira no parto sem dor

Personagens famosas no seu tempo e praticamente esquecidas, umas menos outras mais, é do que trata esta rubrica de pequenas biografias. Esta segunda-feira, trazemos aqui uma mulher notável, de seu nome Cesina Bermudes. Introdutora do parto sem dor em Portugal, foi também a primeira mulher a doutorar-se em medicina, a primeira secretária-geral da Sociedade Teosófica e ainda a primeira mulher a ganhar uma prova de ciclismo. E uma lutadora, em nome da liberdade

ilustração joão carlos santos

Aos 11 anos decidiu que seria médica. E assim foi, embora estivesse em 1919. Especializou-se em Obstetrícia, introduziu em Portugal o parto sem dor, defendeu o feminismo, entrou na política para combater o salazarismo, ajudou a nascer milhares de filhos de mulheres perseguidas por uma ditadura que também a prendeu. Interessou-se ainda pela literatura e pelo desporto. Mas a Medicina encheu-lhe a vida.

Batizada com o nome da avó paterna, nasceu em Lisboa no dia 20 de maio de 1908, na freguesia dos Anjos. Dois anos e quase cinco meses depois, a família rejubilaria com a queda da monarquia, apoiando a república. Cesina Borges Adães Bermudes dizia que nascera esquerdista quando explicava o seu caminho político.

Cândida Emília Borges, a mãe, dona de casa, era uma mulher culta, que lhe ensinava francês e lhe lia mitologia grega ao deitar. O pai, Félix Adães Bermudes, um intelectual, escritor, democrata, defendia a igualdade entre os sexos. A pior lembrança com que Cesina ficou da infância foi a dos efeitos no país da I Guerra Mundial: a escassez de comida e as filas à porta de todo e qualquer lugar que vendesse alimentos.

Como era habitual entre a burguesia, a menina, que aprendeu a ler aos 4 anos, começou por ter aulas particulares em casa, indo para o Liceu Camões com a instrução primária feita. Iniciou-se no quinto ano com mais quatro raparigas, no sexto já só eram duas, no sétimo só restava ela entre 15 rapazes.

Foi crescendo numa sociedade fechada às mulheres sem disso se aperceber. Influenciada pelo pai, desportista, também, fez ginástica, dança, hipismo, tiro e até ciclismo, dando que falar nas provas da Volta a Lisboa em Bicicleta. E foi das primeiras mulheres a tirar a carta de condução automóvel em Portugal.

Cesina só seguirá os passos dos progenitores ao fazer-se membro da Sociedade Teosófica, quando tinha 18 anos, acreditando que “não há religião superior à verdade”, porém, o que a atraiu, de facto, foi a ideia da reencarnação. Achava a ideia “muito inteligente”, entendia que “uma vida só não é suficiente para fazer nada”.

Aos 24 anos formou-se e tornou-se assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa. Nos dois anos seguintes, fez o internato geral; de 1934 a 1936, concluiu o de Cirurgia; entre 1937 e 1938, completou o de Obstetrícia. Depois, foi a Paris ver como se usava um medicamento para o coração que provocava contrações uterinas, logo facilitava o nascimento dos bebés. O parto sem dor ainda era uma ideia inconcebível, em especial para os católicos, que acreditavam dever uma mulher sofrer ao cumprir a função de mãe. Cesina considerava essa crença um disparate.

E começou a ministrar a substância às suas parturientes. Por paradoxal que pareça, as mulheres perseguidas pelo regime sofriam menos do que aquelas que os podiam ter às claras. Cesina, impedida por razões políticas de trabalhar no sistema público, ajudou a nascer mais de três mil bebés na Maternidade de Cascais e em Lisboa, na Clínica Bensaúde, criada pelo médico Pedro Monjardino para mães solteiras, proibidas de ter os filhos nos hospitais públicos.

Em 1947, concluiu o doutoramento sobre o parto sem dor, com 19 valores. Foi a primeira mulher a fazê-lo no país. Mas não se tornou na primeira professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, porque o Estado Novo não gostava das suas inclinações políticas, que se revelaram publicamente dois anos depois, ao apoiar a candidatura de Norton de Matos. Nem conhecia o general. Moveu-a a antipatia para com a ditadura.

O general desistiu a 12 de fevereiro, no dia seguinte seria “reeleito” para a Presidência o homem do regime, o general Óscar Carmona. Em outubro, Cesina foi presa pela PIDE. Ficou três meses na cadeia, dirá que aproveitou para descansar, na verdade reforçou os ideais políticos. Em 1954, voltou a Paris para estudar as técnicas de suavizar o parto, as quais trouxe para Portugal, apesar de só em 1956 o papa Pio XII levantar a condenação católica ao parto sem dor…

Dedicou-se por inteiro à profissão: terá estado casada um dia (na ficha da polícia política lê-se divorciada), todavia dirá nunca ter tido namorados. De tanto ouvir que a irmã era muito bonita e ela muito inteligente, convenceu-se de que era feia e dedicou-se à investigação, à prática da medicina e à luta pela liberdade.

Cesina Bermudes viveu os seus últimos anos em casa da sobrinha Elsa. “Hoje, com noventa e três anos, não tenho clientela para exercer a profissão. As minhas clientes morreram e as que não morreram pensam que eu morri”, disse, numa entrevista, pouco antes de morrer, a 9 de dezembro de 2001.