Sociedade

Um homem corta-se num dedo e descobre a pobreza e a riqueza

Esta é a sexta história da segunda série de “Em Pequeno Número”, que o Expresso começou a publicar há dois anos e que relata as histórias de portugueses que vivem em regiões onde quase não os há

La Paz a capital da Bolívia
JORGE BERNAL/GETTY

Pouco tempo depois de chegar à Bolívia, Alexandre cortou-se num dedo com uma lata de conservas e precisou de levar pontos. Foi a um hospital e quando lá chegou percebeu que teria de comprar todos os materiais necessários - desinfetante, agulha, linha e penso - para que o enfermeiro o pudesse coser. Já passaram três anos mas ainda hoje Alexandre Vareia conta o episódio que o marcou naquele país que, como uma moeda, tem duas faces: a da pobreza e da riqueza.

Aos 35 anos, Alexandre conclui ter encontrado na Bolívia uma qualidade de vida superior à da classe média em Portugal. Atualmente é director financeiro de uma empresa de engenharia espanhola e vive na capital da Bolívia, La Paz, num condomínio fechado com segurança privada, ginásio, piscina e hidromassagem.

“Na Bolívia é possível ter uma boa qualidade vida se se tiver um bom emprego e salário.” Há muitos resorts “paradisíacos”, com espaços verdes, piscinas, sauna e boa comida internacional. “Na Bolívia é possível comer fora todos os dias em restaurantes de luxo, o que em Portugal seria muito difícil.”

Mas esse é apenas um dos lados. O outro mostra uma realidade diferente e as debilidades dos serviços públicos de saúde e educação espelham-no. É frequente ver campanhas televisivas para angariar dinheiro para casos de saúde graves, como uma criança que sofreu queimaduras graves e que necessita de dinheiro para fazer tratamentos e comprar medicamentos.

Alexandre com a esposa e os seus dois filhos
Alexandre Vareia/DR

“É muito complicado veres muita pobreza e não poderes fazer nada.” Há muitas pessoas a pedir esmolas na ruas, mães com filhos ao colo descalças e sem meias, em manhãs frias de inverno. “É muito complicado lidar com isso.” Na Bolívia, as pessoas vivem com cerca de 2 mil bolivianos (€277) por mês, que “é suficiente para levar a vida de um pobre, mas não para levar uma vida digna”.

Os dados das Nações Unidas indicam que há cada vez mais portugueses a viver na Bolívia, onde habitam mais de 11 milhões de pessoas, de acordo com o World Fact Book. As Nações Unidas apontam para 182 cidadãos portugueses a residir no país, mas a Direção Geral de Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas contabilizava 100 portugueses registados no consulado no final do ano passado. Alexandre diz conhecer apenas dois: um engenheiro e um gestor.

O que o levou ao outro lado do Atlântico

A Bolívia não foi um destino escolhido ao acaso: a mulher de Alexandre é boliviana e quando hesitaram entre os países dos dois, Portugal não lhes mostrou um futuro risonho. Ainda viveram em Lisboa, mas o dinheiro era contado e a qualidade de vida baixa, de tal forma que o casal resolveu optar pela Bolívia, conta Alexandre.

Foram precisos pelo menos três meses até se conseguir adaptar ao país, sobretudo a nível laboral. A língua espanhola e a falta de referências no país foram as principais dificuldades que sentiu. “Na Bolívia, os contactos são determinantes para uma pessoa encontrar emprego ou ter um negócio local.”

Uma parte da riqueza do país onde hoje vive está na natureza. Na floresta amazónica “vê-se a natureza em estado puro” e facilmente encontram-se cobras, crocodilos, aranhas e várias plantas e árvores exóticas. Mas neste país - que partilha fronteira com Brasil, Peru, Chile, Argentina e Paraguai - não há mar. “Isso é que me faz muita falta.” Ali, mares só de sal e até têm o maior do mundo, o “Salar de Uyuni”.

Não há mar, não há praia, nem sardinha ou bacalhau - é disso que Alexandre diz sentir falta.Ainda a assim, descobriu na Bolívia uma grande diversidade de fruta : achachairú, carambola, motojobobo e pacay - que sabe a algodão. Introduziu a quinoa na sua dieta e também a yuca, que é uma espécie de milho. O que mais destaca é a carne de vaca, que diz ser “muito saborosa e de boa qualidade”. Neste país, “é possível comprar carne de vaca de alta qualidade por €15 o quilo”.

O fruto exótico achachairú
Alexandre Vareia/DR

As diferenças entre o ocidente e o oriente da Bolívia

O modo de estar do povo boliviano é "acolhedor e humilde" e vê nos bolivianos semelhanças com os portugueses. No norte as pessoas são “mais abertas, mais espontâneas e dizem tudo o que pensam”, como acontece em Santa Cruz. Já no sul de Portugal as pessoas são “mais fechadas, como aqui no ocidente, em La Paz”. É também no oriente do país que se encontram mais oportunidades de emprego, já que é a região onde se concentram mais empresas. No ocidente há mais comércio e serviços e muitos mercados onde se vendem produtos orgânicos.

Em La Paz – uma cidade a mais de 3 mil metros de altura – há quatro teleféricos que são um dos principais transportes da cidade. “Há minibus às centenas” e também o “pumakatari”, que pertence a um sistema organizado de sindicatos de transportes. Para curtas distâncias, a diversidade de transportes é notória, já para as mais longas isso não acontece: para ligar o oriente e o ocidente, não há comboios, apenas uma empresa de autocarros, a “ flota capacana”. O único comboio que há na Bolívia é “muito antigo” e liga Santa Cruz até a fronteira com o Brasil.

La Paz, a capital da Bolívia
FRANCK FIFE/GETTY

O nível de vida de Alexandre permite-lhe ter uma viatura própria, optar por um hospital privado e por escolas privadas para os seus dois filhos, mas diariamente enfrenta uma “discrepância social” difícil de lidar. A parte económica, que lhe permite ter uma boa qualidade, é um dos pilares que o agarram ao país. Destaca ainda a família e o modo de estar do povo boliviano, que admira. Sobre o futuro, não lhe restam dúvidas: “Os baixos salários e os serviços terceirizados” não o convidam a voltar para Portugal.