Sociedade

“Em Portugal, fala-se muito e ouve-se pouco”

Diz que não emigrou, alargou fronteiras”. Professor catedrático da Universidade de Brown, há 45 anos nos EUA, nunca deixou de vir e de olhar para Portugal. Dessa sua obsessão nasceu um novo livro
tiago miranda

Já perdeu a conta às vezes em que lhe trocaram o nome. Dentro dele cabem muitos Onésimos, que encaixam como matrioskas: é professor no departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown, nos EUA, filósofo, ensaísta, cronista, escritor de ficção e de teatro, contador de histórias e de anedotas... É um açoriano de São Miguel, que fez o seminário na Terceira, um português com passaporte americano. Aos 70 anos, pai de três filhos de dois casamentos, viaja sempre que pode, mas continua apaixonado por Portugal, hoje muito longe do “país triste e deprimido” que deixou nos anos 60. Falámos com ele em Lisboa, onde veio apresentar o seu mais recente livro, “A Obsessão da Portugalidade”. Eis Onésimo Teotónio Almeida ou, simplesmente, Onésimo. Começámos a conversa por aí.

Onésimo, esse nome vem de onde?
Foi o meu pai que o escolheu. Foi ter com o padre, pediu-lhe uma lista de nomes. Foi ao mais estranho de todos, ficou Onésimo. Teotónio é o nome do meu padrinho. O meu pai não sabia que Onésimo é um nome clássico, que vem mencionado na Bíblia. Era um escravo ladrão que São Paulo converteu na prisão. Ironicamente, virou padroeiro dos juízes na Grécia. Fui casado com uma grega durante 17 anos.

Um filósofo casar-se com uma grega é muito coerente.
Foi uma coincidência. Ela é de Engenharia, começámos a namorar um mês depois de eu entrar na Universidade de Brown.

Costumam trocar-lhe muito o nome?
Ah, sim, sempre. Nos Açores, toda a gente conhece é Nemésio, por isso muitos chamam-me Nemésio. Estou habituadíssimo. Tenho uma coleção grande de variações do meu nome.

Quantas são?
Devem ser 40 ou 50. Há variações delirantes, mas a mais interessante é do meu último nome. Foi uma chinesa, aluna de linguística, que me enviou uma carta dirigida ao Prof. Almerda. [risos]

Qual é a sua primeira memória 
de infância?
Não sei... Foi uma infância feliz. Tive um tio que era professor na escola primária e teve sempre muito interesse pelos sobrinhos. Desde cedo meteu-me livros nas mãos. Eu adorava livros, comecei a ler com cinco anos. Além disso, era um grande didata, fazia cartões para ensinar a ler, jogos, etc. Também contava muitas histórias e eu adorava ouvi-lo.

E o mar?
Ir ao mar era uma coisa extraordinária. A minha freguesia ficava ainda a dois quilómetros do mar, para os Açores era muito longe. Íamos e vínhamos a pé, os mais velhos levavam os mais novos.

Quando é que começou a imaginar o que é que havia para lá do horizonte?
Nunca tive a sensação de estar preso na ilha. O meu mundo era aquilo. E não era só eu que pensava assim. Uma vez estava em São Jorge, já casado com a minha primeira mulher, estávamos na Fajã do Ouvidor, que fica do lado norte. Do outro lado, fica a Calheta. Uma garota percebeu que a Mary tinha um leve sotaque e perguntou-lhe de onde é que ela era. A Mary respondeu-lhe que era de muito longe, da Grécia, e a miúda retorquiu: “Isso fica para lá da Calheta?” [risos] O nosso mundo era aquele.

Tiago Miranda

Como eram os Açores dos anos 50?
Era um mundo imenso, não era nada pequeno. As outras ilhas eram longíssimo. Quase ninguém ia de São Miguel para as Flores ou Corvo, era raríssimo ir-se à Terceira. Só vim ao continente com 21 anos, a um acampamento internacional de escuteiros.

O que é que os seus pais faziam?
Os meus dois avós tinham terras. O meu avô materno esteve na América e regressou em 1929, na altura da Grande Depressão e jurou nunca mais pôr os pés lá. Mas veio com dinheiro suficiente para comprar umas terras, vivia abastadamente. O meu outro avô tinha uma lavoura grande e o meu pai trabalhava com ele. Tinham 100 e tal vacas, mas um dia houve uma doença que matou muitas delas e o meu pai ficou com problemas económicos, então colocou-se a hipótese de ir para a América.

Foram em 1966.
Os meus pais e a minha avó materna, que tinha nascido lá. Uma tia minha tinha o sonho de juntar os irmãos na América: trazer um que estava no Brasil, outro do Canadá, e a minha mãe. O problema é que o meu avô materno tinha jurado não voltar. Quando ele morreu, foram em menos de um ano. Os irmãos que estavam no Brasil e no Canadá também. Ficou a família toda a viver em casas umas a seguir às outras, em Fall River, no Massachusetts.

Essa sua avó teve uma influência muito grande na sua vida.
Gostávamos muito dela. Era extremamente generosa, estava sempre preocupada com os netos. O meu avô era uma figura presidencial, mas o primeiro-ministro na família era a minha avó. Era ela que administrava o dinheiro. Era mais liberal do que a minha mãe. A minha mãe já foi educada no salazarismo, a minha avó era do período da República. Lembro-me de a minha mãe comentar uma vez sobre o facto de uma pessoa da família namorar com outra que era divorciada. “Isso não é direito”, disse ela. E a minha avó respondeu-lhe: “Ó mulher, o direito do anzol é ser torto”. Tinha uma grande capacidade de entender a relatividade das coisas. A minha outra avó preocupava-se muito com os nossos estudos, punha os meus tios a ensinar-nos francês e inglês.

A sua mãe dizia que o Onésimo era “o seu pai chapado”.
E era mesmo, fisicamente somos muito parecidos. Mas ela não dizia isso como um elogio. O meu pai era um pouco indomável e ela dizia que eu era ‘desarrematado’ como ele, era ‘vulcânico’ segundo algumas pessoas. Quando era jovem, tinha reações e respostas pouco reverentes.

Mesmo no seminário? Foi para lá com 11 anos.
Segui a vocação do meu tio. Nos Açores, e sobretudo em São Miguel, havia uma religiosidade medieval, tudo começava e acabava na religião. E o seminário era considerado um lugar de muito mais respeito e prestígio do que o liceu. Primeiro fui para o seminário menor de Ponta Delgada e depois fui para a Terceira.

Como era a vida lá?
Os dois primeiros anos eram preparatórios, era uma espécie de colégio interno. O dia era esperar pela hora de almoço para depois jogar futebol. Na minha freguesia não havia campos, íamos jogar para os pastos e éramos escorraçados pelos donos. Depois, na Terceira, o seminário era de facto um lugar especial, tinha um leque de professores extraordinário, era praticamente uma universidade. Nos anos 60, começou a grande esperança de a Igreja mudar. Éramos influenciados por tudo o que vinha de fora, sobretudo pelos jornais e revistas de esquerda francesas. Recebíamos até livros proibidos vindos de Lisboa.

Portugal. Quando chegou a Lisboa “tudo era bafiento”. Em pouco tempo, o país “adaptou-se a muitas das coisas do mundo moderno”
tiago miranda

Chegavam-lhes como?
Pelo correio. Havia um livreiro na Livraria Morais que os enviava. Recordo-me, por exemplo, do “Catolicismo de Vanguarda”, de Jean-Marie Domenach, que era proibido porque o Alçada Baptista fez uma levíssima referência à guerra de Angola na introdução. Tornei-me no seminário a pessoa a quem chegavam os caixotes de livros. Lembro-me de um reitor ir ao meu quarto e ver Freud, Marx e Mao Tsé-Tung na minha estante e dizer-me: “Ah, esses livros é que te estão a deitar a perder”. Eu não era marxista, mas lia. Se era fruto proibido, nós queríamos.

Começou a interessar-se mais pela Filosofia do que pela Teologia.
Na Filosofia habituamo-nos ao pensamento crítico e na Teologia é o que diz a Bíblia e os Evangelhos, é o argumento de autoridade. Por isso, nunca me interessou a Teologia. Interessava-me a ética cristã, mas sempre tive problemas sérios com questões dogmáticas, como a infalibilidade do Papa.

Mas pensava ser padre?
Naquela altura sim. Nós víamo-nos como agentes de transformação cultural. Meteu-se-nos na cabeça uma espécie de socialismo cristão, de transformação social, de justiça. Os anos 60 foram um período de idealismo utópico. Entregávamo-nos a todas as causas. Trabalhei, por exemplo, na cadeia de Angra, a alfabetizar os presos. Achávamos que o mundo ia mudar, éramos completamente ingénuos em relação à natureza humana. Isto só era possível num ambiente como o seminário, onde havia uma mitopoética da revolução, da mudança. O 25 de Abril vive nos anos 70 toda a ideologia alimentada na década anterior. Só que nos Açores era um socialismo cristão e no 25 de Abril já estava tudo virado para Marx.

Porque é que deixou o seminário aos 22 anos. Foi por causa do celibato?
Foi. Falava-se abertamente que os padres iam poder casar e ficámos esperançados. Não queríamos chegar ao fim do curso e sermos logo ordenados. Circulava a ideia que terminávamos, mas, como éramos muito jovens, podíamos ir à nossa vida, trabalhar, e, se não mudássemos de ideias, voltávamos, mas nunca antes dos 30 anos. Quando fomos falar disso ao reitor, foi-nos dito que não era possível, então fomo-nos embora.

Veio para Lisboa. O que é que queria da vida nessa altura?
Não sabia. O essencial era fugir à guerra. Tinha tido um mentor no seminário, chamado José Enes, que depois foi professor de Filosofia na Católica, foi ele que me disse para ir para lá. O plano era formar-me em Lisboa, fazer o doutoramento na América e voltar para dar aulas na Católica.

Achou Portugal “um país triste e cinzento”.
Não faz ideia. Vinha de um ambiente muito alegre em Angra e aqui era tudo bafiento, toda a gente muito sisuda. As pessoas eram quadradas, tinham medo de dizer o que quer que fosse. Muitos não sabiam sequer onde eram os Açores. Eu brincava com isso, dizia que íamos de uma ilha para a outra de baleia. Não me sentia nada em casa.

Ficou pouco tempo.
Em 1972, o José Enes sai da Católica. Eu estava de férias na América e ele diz-me que não era boa ideia eu regressar, porque havia um grande fechamento na universidade. Nessa altura, começou a surgir nos EUA o ensino bilingue, que aparece por pressão dos cubanos. Era outro plano utópico. Então começam a ser necessários professores de português para lecionar os emigrantes que estavam a aparecer em grande número dos Açores, a seguir ao vulcão dos Capelinhos, em 58, e sobretudo a partir de 1965, que é quando começa a grande vaga de emigração açoriana. Eu tinha sido convidado por uma escola para dirigir uma equipa de professores que escrevia material didático para português e quando recebi esse telegrama do José Enes fui ter com eles e disse que aceitava com uma condição: se pudesse continuar a estudar. Fui para a Brown, que era a que ficava mais perto. Combinava as duas coisas. Foi uma aprendizagem muito grande.

Tiago Miranda

O que é que aprendeu?
Comecei a perceber claramente quais eram as perguntas dos americanos sobre as crianças portuguesas. Coisas do género: porque é que os pais não se envolvem na escola; porque é que numa redação os alunos escrevem coisas poéticas e abstratas e não respondem diretamente; porque é que não são disciplinados a estudar; porque é que têm pouco rigor analítico; porque é que falam todos ao mesmo tempo... Interessei-me desde muito cedo por essas diferenças culturais, tentava ler tudo o que havia sobre os Açores e sobre a cultura portuguesa. Este “Obsessão da Portugalidade” não é mais do que um conjunto de reflexões minhas resultantes da tentativa de responder às questões que me apresentavam.

A América deve ter sido um sopro 
de liberdade.
Inicialmente, não morri de amores pelos EUA, o meu sonho era ir para Paris. Paris era a luz. Os livros, os grandes pensadores, o cinema, tudo o que era de qualidade era francês. Na América, o que me fascinou logo foi a universidade, o ambiente era tão agradável e tão estimulante que acabei por esquecer tudo o resto. Depois casei-me no meu segundo ano lá, desisti de Paris.

E foi-se afastando do pensamento francófono.
Fui-me desinteressando. O pensamento anglo-americano é muitíssimo mais rigoroso. Entre os portugueses, ninguém fazia ideia da altíssima qualidade dos departamentos de Filosofia das universidades americanas. Ainda há poucos anos fui mostrar Harvard ao diretor de um diário português e ele perguntou-me: “Mas há vida intelectual aqui?” Esse antiamericanismo ainda existe.

Que comunidade portuguesa encontrou nos EUA?
Era toda recém-emigrada. A primeira vaga tinha sido entre 1910 e 1920 e essa vaga estava toda assimilada, os que lá ficaram americanizaram-se, mudaram o nome. A que encontrei era toda nova e estava a recriar ali o seu espaço português.

Chamou-lhe L(USA)lândia, “uma ilha portuguesa rodeada de América por todos os lados”.
Era uma comunidade um pouco claustrofóbica. Tenho uma nítida lembrança de como criei esse conceito. Estava numa aula de Metafísica, a refletir sobre aqueles conceitos altamente abstratos, e, do lado de lá do rio, a cinco minutos, havia uma comunidade que não fazia a menor ideia do que é que se estava a passar ali. Eu praticamente vivia na Brown, mas não queria prescindir do outro lado. Fui sempre convivendo entre um lado e outro, e isso nunca gerou nenhuma esquizofrenia. Vivo perfeitamente essa ideia de identidade múltipla.

Como é que essa comunidade olhava para si, o professor da Brown?
Nunca houve isso, sempre fui só o Onésimo. As pessoas conheciam-me da televisão, tenho desde 1979 um programa de entrevistas no Portuguese Channel. Entrevistei Mário Soares, Amália, Manuel Alegre, Saramago, toda essa gente. E também entrevisto pessoas locais com histórias interessantes. Adoro ouvir histórias.

Foi por isso que nunca teve o fascínio da ficção?
Costumo dizer que não consigo inventar histórias mais interessantes do que aquelas que ouvi e vivi.

Ainda antes de acabar o doutoramento em Filosofia convidaram-no para integrar um Centro de Estudos Portugueses.
E passei a estar a tempo inteiro como leitor nesse centro e em part-time em Filosofia. Começámos a formar professores para o tal ensino bilingue, éramos o único centro nos EUA a fazê-lo. Fui criando várias cadeiras relacionadas com a história, a cultura e até a literatura portuguesas. Ao mesmo tempo, não queria deixar a Filosofia e criei um curso interdisciplinar chamado “A Formação das Mundividências”, em que refletia filosoficamente sobre como se formava a cabeça de um indivíduo em diferentes partes do mundo. Alguns dos alunos mais brilhantes da Brown têm passado por lá. E continuo a dar cursos sobre a identidade portuguesa.

Deslumbre. Na baixa de Lisboa, antes de subir ao miradouro do Arco da Rua Augusta. “A cidade está como nunca esteve. Não é por acaso que há este boom turístico”, diz
tiago miranda

É um tema recorrente na sua obra.
Começou porque era preciso formar os professores que iam lidar com alunos portugueses, então precisavam de entender como funcionava a mente portuguesa. Fui tentando ler o que havia sobre este tema e começaram a surgir temas recorrentes na história do pensamento português: a obsessão com os Descobrimentos, depois a queda, os estrangeirados, a obsessão com a decadência, a Renascença... Há uma grande quantidade de livros sobre isso, só que ao lê-los fico um pouco desconsolado, são muito pouco críticos. O que tento fazer neste livro é olhar criticamente para o que tem sido escrito pelos pensadores portugueses.

Quais são as maiores asneiras que se têm perpetuado?
Uma delas está consignada na maior bobagem de um autor muito badalado, Teixeira de Pascoaes, que é um excelente poeta, mas como pensador é muito frágil. Ele tem um livro chamado “A Arte de Ser Português” e o que está lá é muito pobre... Criou uma imagem muito redutora do que é ser português. Diz, por exemplo, que os portugueses não são um povo inteligente, somos fundamentalmente emotivos, e toda a gente acha aquilo magnífico! Salazar adorava-o. Aquilo estava tudo na ideologia do livro da 3ª classe, não são coisas inconsequentes. Não há uma identidade portuguesa imutável, nós temos sido várias coisas. Existem algumas marcas, mas muitas delas não são exclusivamente portuguesas, são mediterrânicas, e nem todos as têm, nem os portugueses de hoje são iguais aos do século XVII.

O passado, sobretudo a glória dos Descobrimentos, é uma obsessão nacional.
Sim, é uma obsessão constante. Os portugueses têm um grande complexo de inferioridade em relação ao centro e ao norte da Europa. E a única salvação é o “também já fomos grandes!”.

A saudade é mesmo um sentimento português?
É um mito. Abusa-se da palavra saudade. Para os portugueses tudo é saudade, até há saudades do futuro! E não é verdade que seja intraduzível, os outros também têm saudade. Os ingleses expressam-na com “I’m missing”, “I’m longing” ou “homesick”, por exemplo.

Do que é que tem saudades?
De ser jovem.

Lida mal com a idade?
Não, mas gostava que os 70 anos não tivessem chegado tão depressa. Tenho a noção de que não há muitos anos à minha frente, mas não vou ficar deprimido com isso.

Diz que Portugal tem um feitio “maníaco-depressivo”: tem alternado ao longo da história momentos de desmesurada euforia com outros de profunda depressão.
Há uma dominante muito emotiva no nosso temperamento. E as emoções oscilam muito. Passou-se isso com o desastre de Entre-os-Rios, o país vinha da euforia da Expo-98 e do caso de Timor, uma euforia que foi crescente durante a década de 90 com o apoio dos dinheiros que chegavam da Europa. Eu via a bolha a crescer e pensava: “Mas este país está a ficar louco?”. Aconteceu o mesmo com o 25 de Abril. Mas depois chega-se à fossa e aí é tudo uma porcaria, o país é uma choldra, cita-se o Eça. Agora todo o mundo fala de Portugal, o ego nacional vai enchendo de novo, mas receio que a bolha rebente mais uma vez.

Quando olha para o país, depois 
de 45 anos nos EUA, o que é que vê?
Vejo uma diferença abissal em relação ao que conheci nos anos 60; não há comparação possível. As pessoas queixam-se, mas, apesar de todos os problemas que tem, Portugal é hoje um país aberto, com gente imensamente capaz, informada, empreendedora... Portugal adaptou-se em tão pouco tempo a muitas das coisas do mundo moderno. No 25 de Abril, houve o rebentar da garrafa de champanhe, a espuma saiu toda e transbordou, ficou tudo descontrolado, mas as águas foram serenando.

De que é que hoje gosta mais 
em Portugal?
É um país bonito, que tem uma variedade geográfica muito interessante, desde o Gerês à zona das Beiras, à Arrábida, à paisagem do Alentejo, o Douro... A nossa geografia e a nossa arquitetura não são grandiosas, mas são graciosas. Felizmente, graças aos apoios europeus, preservou-se o centro de muitas cidades e vilas históricas. Guimarães é um exemplo, mas também Melgaço, Monção, Valença, Ponte de Lima, Amarante, a Beira está cheia de vilas dessas, o Alentejo também... Adoro passear por este Portugal encantador, faço-o muitas vezes. A próxima vai ser em junho, com o meu filho Duarte e a minha nora que é germano-americana e quer conhecer o país. É um prazer ver o colorido que o Porto vai ganhando, ver a baixa de Lisboa como nunca esteve. Não é por acaso que há este boom turístico. Sente-se uma harmonia, uma paz e uma serenidade que não se encontra noutros sítios.

E o que é que o irrita?
Irrita-me o barulho que se faz à mesa nos jantares, não se consegue conversar. Há pouca curiosidade em conversar sobre assuntos mais sérios, dificilmente se dialoga. Depois, as pessoas aqui sabem tudo sobre o mundo, têm sempre lições e soluções para todas as questões. Fala-se muito e ouve-se pouco.

É um açoriano que viveu em São 
Miguel e na Terceira, e um português com passaporte americano. Como 
é que se sente afinal?
Sou isso tudo. Sinto-me sempre açoriano, vivi nos Açores durante o período mais importante da minha vida. Costumo dizer que sou como as matrioskas: cá dentro tenho os Açores, depois Lisboa, depois a Europa, a América, o resto do mundo, mas nenhuma desaparece, estão cá todas. A identidade é assim: uma acumulação de várias experiências, não deixamos de ser uma coisa quando somos outra.

Levou essa identidade múltipla 
também para a sua vida profissional. É professor, ensaísta, filósofo, cronista, escritor de ficção, de teatro...
E nunca deixo de ser o Onésimo no meio disto tudo.

Sente-se melhor em alguma destas peles?
Não. Mas há um tom, o tom da oralidade, que é a minha marca. Escrevo porque quero dialogar com as pessoas.

Gosta mais de contar histórias 
ou de debater ideias?
Olhe, não sei. Quando discuto ideias, discuto-as muito a sério. Em Portugal, acabo a contar anedotas e histórias porque não dá para muito mais. Em vez de me irritar, passa-se um serão agradável entre amigos.

A Anabela Mota Ribeiro descreveu-o como “um vulcão raramente adormecido”. Revê-se nesta imagem?
Já me disseram isso várias vezes. Costumo dizer que nos Açores os vulcões deram lugar a lagoas e a água das lagoas é muito serena. Sou intempestivo a falar, tenho uma calma interior muito grande. Se a minha mulher estivesse a ouvir-nos, diria que é verdade. E a opinião dela conta mais do que todas as outras.

Estão juntos desde quando?
Desde 90. A Leonor veio para cá como leitora do Instituto Camões quando eu estava de saída do primeiro casamento, que durou 17 anos. Ela apareceu, fomos encontrando imenso em comum... Fui sempre um indivíduo com sorte na vida.

Os filhos são todos do mesmo casamento?
Não, tenho uma filha do primeiro casamento, a Tatyana; o Duarte e o Pedro herdei-os da Leonor, adotei-os, não têm contacto nenhum com o pai. Foram criados os três como irmãos, são todos Almeidas.

Temos de falar sobre Trump. 
Ele é uma anedota má que chegou 
à presidência?
O problema com algumas anedotas é que às vezes são eleitas. É preciso lembrar que ele ganhou por uma margem pequeníssima, 80 mil pessoas, caberiam num estádio. E nas sondagens tem agora 35% de aprovação. A América não está a virar à direita; está, como a Europa, cada vez mais extremada. O facto de ele não estar agora a conseguir fazer muitas das coisas que se propôs é sinal de que as instituições americanas são muito sólidas e têm muitas salvaguardas para que as normas sejam cumpridas. Ele está frustrado.

Está confiante de que as visões mais apocalípticas não se vão confirmar.
Bom, como ele é o Presidente e como tem acesso aos botões, tudo pode acontecer. Mas o sistema tem as salvaguardas tão bem estruturadas que ele não pode chegar ali e dizer “quero, posso e mando”. Mas não tenho nenhum respeito por Trump. Ele mente por ideologia, é um egomaníaco descomunal. Os valores dele são asquerosos.

Acha que ele vai cumprir o mandato até ao fim?
Prefiro que esteja controlado, já perdeu o respeito da maioria, do que [Mike] Pence, o vice-presidente, que é bem mais perigoso, passar a presidente. Como vai haver eleições para a Câmara dos Representantes e para o Senado em 2018, os republicanos nas duas casas só vão pensar na reeleição e vão ter de decidir se se distanciam de Trump ou não. Se ele não conseguir fazer mudanças até lá, também não vai conseguir depois. Se lhe fogem das mãos a Câmara dos Representantes e o Senado, acabou-se, vai estar nos dois anos seguintes completamente amarrado. Esse cenário para mim é mais seguro do que haver um impeachment e Pence assumir a presidência. Com a sua maneira suave, é capaz de ser muito mais eficiente a garantir o apoio de uma camada do centro-direita.