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A Revista do Expresso

Cinema: o que há de amargo nos homens

“As Ervas Secas” é uma descida metódica ao âmago do ser humano e aos males que lhe moldam o carácter. É um dos filmes do ano e um dos mais consistentes de um moralista intranquilo, o turco Nuri Bilge Ceylan

Os atores Deniz Celiloglu, Musab Ekici e Erdem Senocak (da esq. para a dir.), aqui nos papéis de Samet, Kenan e Tolga em “As Ervas Secas”

A palavra ‘preguiça’ nunca antes foi tão pronunciada num filme de Nuri Bilge Ceylan como em “As Ervas Secas”. Há um vagar aflitivo que se instala neste filme e que já não é novo na obra de Ceylan, qualquer coisa em suspenso que caiu que nem maldição sobre as personagens e que as impede de darem rumo à vida, acentuando um desencanto, uma misantropia que o grande cineasta turco persegue há muito. “As Ervas Secas” parte de um argumento muito elaborado, dialogado com abundância e coescrito entre o cineasta, a sua habitual guionista e companheira na vida Ebry Ceylan (atriz em “Uzak” e “Climas”) e Akin Aksu, que já coescrevera e interpretara um papel no anterior “A Pereira Brava”. É um texto denso e exigente, determinante para a escolha do elenco, e tal como já acontecia em “Sono de Inverno” ou em “Era uma Vez na Anatólia”, prosa que parte de um impasse, de um qualquer baque que se apoderou da(s) personagem(s) e a partir do qual o turco lança as suas reflexões. O maior motivo dramático de Ceylan é o tédio. Ao longo dos anos e de inúmeras intervenções públicas ou entrevistas, tem defendido Ceylan que é em reação ao tédio que nós tomamos as mais importantes decisões das nossas vidas.

Pois é nesta perspetiva que encaramos Samet, professor de liceu, ainda jovem, desterrado que foi para um período de docência de cinco anos no meio de nenhures, numa pequena localidade do centro de uma Anatólia coberta de neve até aos joelhos. Uma leve simpatia esconde-lhe o egoísmo. Samet e o seu colocatário Kenan estão a viver a prazo, são um termómetro de sensibilidades e de estados de espírito da sociedade turca. O primeiro não esconde que está mortinho para que se concretize uma transferência para Istambul. E naquele inverno que parece não ter fim, naquele tempo tchekoviano que não deixa o relógio avançar, Ceylan abre então uma porta rara a uma realidade que não costuma chegar ao seu cinema e que deixará a audiência a pensar em movimentos como o #MeToo. É que uma das alunas de Samet, uma adolescente com sorriso de Mona Lisa, chamada Sevim, sente-se a favorita do professor e escreve, apaixonada, uma carta de amor que vai parar às mãos erradas. A situação deixa Samet sob suspeita de um qualquer princípio de abuso que o embaraça. A tão aguardada transferência para a capital fica tremida, por mais que a hierarquia do liceu tente abafar o caso e pôr fim ao rumor.