Com a assinatura hoje do decreto de demissão do primeiro-ministro pelo Presidente da República (PR), o Governo entra em gestão, mas a dissolução do Parlamento só deve acontecer no próximo dia 15 de janeiro, conforme já anunciou Marcelo Rebelo de Sousa. Nessa altura, com a Assembleia da República (AR) dissolvida, o chefe de Estado não poderá ser alvo de um eventual processo por crimes de responsabilidade política no âmbito do caso das gémeas luso-brasileiras. Em causa está o facto de entrar em funcionamento a Comissão Permanente, que não tem essa competência e a Constituição prever que é necessário o Parlamento estar em plenas funções, com 230 deputados, para autorizar um processo ao chefe de Estado.
“O processo a ter seguimento teria que ser com uma iniciativa apresentada por 1/5 dos deputados. E a Constituição estipula como condição parlamentar votar em plenário, sendo que a deliberação só poderia ser aprovada por uma maioria de ⅔ dos deputados”, afirma ao Expresso o constitucionalista Paulo Otero, apontando para o artigo 130.º da Constituição relativo à responsabilidade criminal do PR.
Essa questão está regulada quer na Constituição, quer no regimento da AR. “Por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça” e a sua “condenação implica a destituição do cargo (e a impossibilidade de reeleição)”, pode ler-se nas alíneas um e 3 do artigo.
Se fossem crimes fora o exercício das suas funções, o chefe de Estado teria de responder perante a Justiça nos tribunais comuns, mas após terminar o seu mandato. “Não me parece que seja crime à luz de todos os elementos até agora conhecidos. Não há, à partida, matéria de natureza criminal a imputar ao PR. Se fosse fora do exercício das funções, o Presidente só poderia responder no final do respetivo mandato. Essa é a dimensão jurídico-constitucional”, sublinha o professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa (FDL).
Fora a questão constitucional, Paulo Otero reconhece, contudo, que o PR está “fragilizado” do ponto de vista político, faltando saber quem invocou o nome do Presidente, sobretudo no atual contexto. “Quem tem responsabilidade na área administrativa, quer ao nível do Hospital de Santa Maria, quer ao nível da decisão é o Governo e não o Presidente da República”, vinca.
Por outro lado, o constitucionalista realça que é uma prática desde sempre do Chefe de Estado – no fundo um pouco a ideia de que o “Presidente é ainda o rei que pode fazer tudo” –, receber pedidos dos cidadãos. “Antes era mais por carta, agora por email, mas é a mesma ideia. E, curiosamente, os candidatos em campanha presidencial também prometem muitas vezes aquilo que não está no âmbito das suas competências", nota ainda.
Não tendo os Presidentes da República poder executivo, reencaminham os pedidos que lhe são formulados para o primeiro-ministro e Governo, que depois distribuirá pelo ministro ou o secretário de Estado competente em função do sector, a quem cabe dar ou não seguimento aos respetivos pedidos. “Eu diria que devem chegar milhares de pedidos a Belém. Aqui há só uma particularidade, é que veio através do filho do Presidente. Esse é que é o problema e os esclarecimentos que o PR tem dado não têm sido felizes.”
Imunidade parlamentar de Marta Temido e António Sales pode ser levantada
O PS chumbou esta quinta-feira as audições à ex-ministra da Saúde Marta Temido e ao secretário de Estado António Sales, no âmbito da polémica das gémeas que sofrem de Atrofia Muscular Espinhal e a quem foi disponibilizado um medicamento, que custa cerca de 2 milhões de euros. Mas a Iniciativa Liberal (IL) recorreu ao direito potestativo para forçar a audição dos dois ex-governantes.
Entretanto, o Chega avançou com um requerimento enviado à presidente da Comissão da Transparência e Estatuto dos Deputados, a socialista Alexandra Leitão, para pedir a verificação da legalidade da conduta de Temido e Sales, a quem cabe a competência de aprovar ou não um eventual levantamento da imunidade parlamentar, que teria de ser confirmada em plenário.
Se a questão se colocar a partir de 15 de janeiro caberá, por sua vez, à Comissão Permanente dar luz verde ou não ao levantamento da imunidade parlamentar dos dois deputados socialistas. “Não se pode parar o país, neste caso a Justiça. Por isso, o regimento da Assembleia da República prevê essa situação”, observa Duarte Pacheco, deputado do PSD e secretário da mesa da AR.
Membro também da CP, Duarte Pacheco frisa que a regra da maioria está salvaguardada no órgão que funciona durante o período em que o Parlamento se encontra dissolvido ou fora do funcionamento efetivo da AR. "Cabe assim à Comissão Permanente exercer os poderes da Assembleia relativamente ao mandato dos deputados, sem prejuízo da competência própria do Presidente da Assembleia da República e da comissão parlamentar competente", pode ler-se no regimento.
A CP pode também dar autorização a deslocações ao estrangeiro do chefe de Estado, uma das últimas competências do órgão, em vigor desde a presidência de Assunção Esteves. Em dezembro de 2013, a AR teve que reunir-se ainda numa sessão plenária extraordinária, que durou cerca de cinco minutos, só para dar luz verde ao projeto de resolução que autorizava a deslocação de Cavaco Silva a África do Sul, no âmbito das cerimónias fúnebres de Nelson Mandela.