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Estratégia, ataque ao PS, críticas internas: eis a Convenção do Bloco em 4 pontos

Em quase 10 horas de intervenções, o primeiro dia da Convenção do Bloco serviu para ouvir os bloquistas sobre os temas quentes no partido. Entre nomes já conhecidos e caras novas, o partido discutiu a estratégia interna, passou ao ataque à maioria socialista e debateu formas de combater a extrema-direita. Pelo meio, ouviram-se críticas internas

NUNO BOTELHO

As atenções estavam postas nas principais figuras do Bloco de Esquerda: Catarina Martins, líder cessante, Mariana Mortágua, a mais provável sucessora, e Pedro Soares, porta-voz da moção adversária e uma das principais vozes da ala crítica do partido. Contudo, as quase 10 horas de reunião magna serviram também para ouvir os bloquistas sobre os temas quentes da atualidade.

Pelo palco do pavilhão do complexo desportivo do Casal Vistoso, em Lisboa, passaram nomes como Marisa Matias, eurodeputada, Isabel Pires, deputada, Moisés Ferreira, ex-deputado do Bloco, e os históricos do partido, de Francisco Louçã a Mário Tomé. Entre centenas de intervenções, fez-se luz sobre o futuro do Bloco, atirou-se ao PS e discutiram-se soluções para combater a extrema-direita. Com menos aplausos, surgiram também vozes críticas da atual direção. Um resumo do primeiro dia em quatro pontos:

1. A narrativa e a estratégia

Já passou um ano e meio desde o tombo eleitoral que obrigou a reestruturar toda a organização partidária, mas o Bloco de Esquerda é hoje um partido ainda a lamber feridas. A narrativa não mudou particularmente desde essa altura. “Chantagem [do PS] desde que a geringonça acabou em 2019”, disse Catarina Martins, “chantagem permanente”, apontou Marisa Matias, “chantagem ridícula que acusa de populista qualquer voz crítica do Governo”, acusou Mariana Mortágua, “tivemos de definir-nos perante a chantagem do PS”, defendeu Jorge Costa.

A direção do Bloco mantém que, mesmo com a queda que se seguiu, romper com o PS era a única solução para “cumprir o mandato” dado pelos eleitores e, por isso, não se arrepende. Agora é hora de olhar em frente, com uma nova liderança e o reforço de “todas as lutas”. Se no Parlamento o Bloco encolheu, agora é preciso pôr a força toda na rua.

Mariana Mortágua apontou o caminho recorrendo ao já habitual bordão da “vida boa” e aos temas que o marcam. “A vida boa é o que merece cada pessoa que ganha a vida a trabalhar: habitação, saúde, educação, salário, justiça nos impostos, e tempo para tudo o resto.”

De saída, Catarina Martins frisou que o Bloco se encontra consigo próprio na rua, “nas grandes mobilizações unitárias que juntam gente diferente, juntam urgências concretas, mostram que a esquerda é da praça e da rua”. Para a líder que agora se despede da coordenação (não da vida política ativa, como deixou claro de manhã), a voz do povo, e a do Bloco, “vai crescer”. “Já está a crescer.”

Pelo meio, Jorge Costa, outra figura-chave e um dos estrategas do partido, afirmou que a esquerda foi posta à prova não apenas em janeiro passado, altura das eleições, mas no deste ano. “Fomos o único partido presente na enorme manifestação dos professores a 14 de janeiro. Não somos o único a defender os direitos dos professores, mas [esse] foi um momento definidor, porque ficou claro que o Bloco é o único que se apresenta com estratégia”. E ela está lançada.

Passagem de testemunho entre Catarina Martins e Mariana Mortágua será feito este fim de semana, com a bênção dos principais dirigentes, como Marisa Matias
NUNO BOTELHO

2. A maioria socialista que “é preciso vencer”

A divisão que existe no Bloco já é pouca, e desaparece por completo quando o tema é a governação socialista. Depois das críticas lançadas por Catarina Martins esta manhã, no último discurso como coordenadora – onde acusou a maioria de ser “cavaquista”, “arrogante” e “enredada nos seus próprios erros” –, foram vários os militantes que deram mais fôlego às críticas ao executivo de António Costa.

Marisa Matias, eurodeputada e um dos nomes queridos do Bloco, defendeu os tempos de ‘geringonça’ que permitiu “colocar a política ao serviço das pessoas”, “interromper ciclo de empobrecimento do país” e “romper com políticas de austeridade”. Em resumo, o país “ganhou” com este acordo. Com a atual governação “a solo”, continuou a bloquista, deu-se um “travão às conquistas sociais e laborais”. “Maioria não é sinonimo de estabilidade, o PS ajudou a enterrar essa ideia.” A eurodeputada lançou ainda uma farpa a Marcelo Rebelo de Sousa que, por duas vezes, enfrentou nas presidenciais: “um Presidente que continua a sonhar com condições que faça a direita regressar ao poder”.

No mesmo tom crítico, Moisés Ferreira, ex-deputado do Bloco, resumiu a tarefa neste novo ciclo político: “não é convencer o PS, mas vencer o PS”. A atual governação socialista, disse o bloquista, contribui para o somatório de crises que se vive no país. “Governo do PS é crise no país. Crise da especulação que rouba salários, crise da especulação que retira casas, crise que põe saúde nos mínimos”, enumerou. Para contrariar este ciclo, é preciso uma esquerda que se assuma como “alternativa à direita e ao PS”. É esta a “responsabilidade” do Bloco como “força socialista e transformadora”. “E não é pequena”, reiterou, enquanto recebia um forte aplauso dos ‘camaradas’ na sala.

Também Isabel Pires, a deputada que está a substituir José Soeiro e ficará com o lugar de Catarina Martins no Parlamento, queixou-se da contradição que tem o “rosto do PS”. “Por um lado, a economia cresce, por outro é impossível melhorar a vida das pessoas. É o liberalismo a funcionar e tem o rosto do PS”.

A deputada deixou críticas à vontade socialista de privatizar “o que deve ser de todos” e ao “desinvestimento” nos serviços públicos, dos médicos do SNS aos professores da escola pública. “Estamos obrigados a defender a saúde e os serviços públicos para todos e todas”. No tema das carreiras destes profissionais, as críticas bloquistas não ficaram por aqui. Bruno Maia, um dos dirigentes em que o partido aposta, considerou que o PS “escolhe ignorar carreiras dos profissionais de saúde e subfinanciar o SNS”. E acrescenta: “são escolhas, não inevitabilidades”. Estas políticas socialistas, continuou, contribuem para o “sonho da direita” de “partir o SNS aos bocados e entregá-lo aos privados”.

3. A extrema-direita do “medo” e a “oposição sem tréguas”

Além da governação socialista, o combate à extrema-direita une os bloquistas. Depois da sessão de pré-arranque da última sexta-feira – que juntou Marisa Matias, José Gusmão, Guilherme Boulos, deputado federal brasileiro, e Younous Omarjee, do França Insubmissa – o palco da Convenção serviu para deixar recados ao Chega – ainda que raramente se tenha ouvido o nome do partido – e a quem alinha com ele.

Fernando Rosas, um dos fundadores e históricos do partido, assumiu que existe um “perigo real da extrema-direita fascizante” que se alimenta do “medo”, da “precariedade” e do “desespero”. Para o historiador, são os “efeitos das políticas do PS” que alimentam o bicho da extrema-direita – das políticas de austeridade à falta de soluções em temas como a habitação, a saúde ou a educação. Estas são razões suficientes, de acordo com o fundador, para o Bloco fazer uma “oposição frontal ao PS”.

Na moção oposta, a opinião é a mesma. Manuel Carlos Silva, apoiante da moção adversária de Mariana Mortágua, também aponta as “políticas de austeridade de PS e PSD” como “causa do crescimento da extrema-direita". Contudo, expôs-se aqui uma das fraturas entre alas do partido. O bloquista criticou a atual direção por não tido em conta os “perigos do Chega” a tempo. “Se [a atual direção] e tivesse consultado a base do partido, poderia ter tido outras estratégias”. Para o futuro, Manuel Carlos Silva pediu menos “ziguezagues” e “proximidades ao PS”.

Ampliando a escala, Sandra Cunha, ex-deputada, falou sobre o crescimento da extrema-direita no mundo. Entre as consequências, disse, estão “ataques ignóbeis aos direitos das mulheres”, “ameaças aos direitos como o aborto” e a “direitos homossexuais”. “Há cada vez mais ataques machistas e homofóbicos menos envergonhados incluindo dentro do Parlamento. Em Portugal não é diferente”, reiterou. A resposta, mais uma vez, passa pelo partido: “o Bloco tem responsabilidade maior de ser oposição sem tréguas”.

4. As críticas internas

Como era esperado, a corrente interna que se opõe à linha da direção engrossou o discurso e chegou a causar desconforto no pavilhão. Os críticos estão reunidos no movimento Convergência, que aparece nesta Convenção enfraquecido em relação à candidatura que apresentou há dois anos. Tem, ainda assim, figuras conhecidas do partido, casos dos ex-deputados Pedro Soares, Carlos Matias e Mário Tomé (este ainda pela UDP, um dos partidos-mãe do Bloco).

As críticas dividem-se em três: “falta de democracia interna”, espelhado no aumento do número mínimo de subscritores para apresentar moções alternativas; a inexistência de um “balanço das sucessivas perdas eleitorais” do Bloco; e a posição face à guerra na Ucrânia, nomeadamente a ida do partido na delegação parlamentar que acompanhou Augusto Santos Silva na visita a Volodymyr Zelensky.

Bloco de Esquerda elege este domingo os órgãos dirigentes do partido
NUNO BOTELHO

Se Pedro Soares tinha dado o mote na apresentação da Moção E, a da Convergência, falando em “discursos vagos” da direção, pedindo uma “polarização à esquerda” e perguntando “o que foi o Bloco fazer à Ucrânia (…) a convite de um neonazi”, referindo-se ao presidente da Assembleia Nacional da Ucrânia, Ruslan Stefanchuk, Mário Tomé carregou na nota Ucrânia. “Não queria ter estado na pele da camarada Isabel Pires”, a deputada que foi à Ucrânia e que vai substituir Catarina Martins no Parlamento. O histórico bloquista chamou “inaceitável” a essa participação e pediu “a recusa de enviar uma bala que seja para Zelensky”. Tomé, como os restantes membros da Convergência, dizem que a posição do Bloco face à guerra é “oportunista”.

Ao final da tarde, coube a Jorge Costa dar a resposta à acusação de oportunismo. “Dizem, e com razão”, que a questão da guerra “é complexa”. Mas “não se pode enfrentar a complexidade se esquecermos o que é simples”. “Não é por ser hostil aos EUA que regime de Putin deixa de ser imperialista ou passa a ser anti-imperialista.” “É simples”, fechou Jorge Costa. A posição do Bloco é “denunciar o invasor e apoiar o invadido, seja em Gaza, Timor, Sahara Ocidental ou na Ucrânia.” E assim acabou ovacionado pela esmagadora maioria dos delegados.

Mas as críticas mais violentas são mesmo para dentro. Os integrantes do Convergência dizem que o partido está “desmobilizado” e que as vozes minoritárias no Bloco “são silenciadas”. E mesmo quem se afastou do movimento repete a crítica.

Foi o caso de Ana Sofia Ligeiro e Bruno Candeias, dois dos dissidentes entre os dissidentes. “Se a militância nos dá força, este partido desmobiliza a sua, quando desconsidera opiniões divergentes”, disse a primeira, dirigente de Santarém, “esmagamento imposto pela maioria, que verticaliza a organização e substima a participação militante”, acusou o segundo, da distrital de Setúbal.

Uns e outros apontaram como “prova” da desmobilização no Bloco de Esquerda o facto de terem votado na eleição dos delegados apenas cerca de um quinto dos militantes inscritos. Apesar de ruidosos, os críticos da Convergência poderão até ver reduzido o número de membros eleitos para a Mesa Nacional .

A votação das moções está aberta e termina amanhã.