Política

Marcelo dá recado à esquerda: o Chega não é um problema exclusivo do PSD

A ideia era não falar de política nacional mas Marcelo fala sempre. No festival de podcasts dos 50 anos do Expresso, o Presidente voltou ao aviso que fez em 2018 ("e muita gente não viu"): “atrasos e vazios na resolução de problemas sociais prementes” adubam os radicais e nenhum partido clássico escapa a culpas e riscos. "A sondagem das sondagens são as eleições. Vamos ver”, é o seu mantra para 10 de março

José Fernandes

O Presidente da República aceitou ir ao podcast Expresso da Manhã falar com Paulo Baldaia no âmbito do festival de podcast dos 50 anos do Expresso com um pressuposto. Falaria de 2024 a nível global, sem entrar na política caseira, que já vive mergulhada em registo de campanha eleitoral. Mas não foi difícil a conversa pelas disfuncionalidades do que se passa lá fora deixar brechas para entrar no que se passa cá dentro. E Marcelo aproveitou-as.

Minutos depois de ter ouvido Miguel Sousa Tavares, em conversa com Paula Santos no podcast De Viva Voz, criticar-lhe o primeiro discurso do ano com o argumento de que se é para não dizer nada “mais vale não fazer discursos de Ano Novo” (a sala aplaudiu), Marcelo não foi ao repique mas deixou duas mensagens.

Sousa Tavares acha que o PS vai ganhar as eleições de 10 de março - “O maior desafio de Marcelo vai ser Pedro Nuno Santos”, afirmou. Já Marcelo aconselha calma: “A sondagem das sondagens são as eleições. Vamos ver”.

Quanto ao tema dominante da conversa sobre o 2024 global - o crescimento dos radicalismos na Europa e no mundo, com a reeleição de Donaldo Trumpo como pano de fundo - o Presidente também o aproveitou para deixar um conselho/pedido aos partidos clássicos portugueses: que não se iludam sobre quem ganha e quem perde com a afirmação do Chega.

"Esta extrema-direita quer dividir a direita clássica", mas acaba também por "cair em cima da esquerda", alertou. Lembrando que foi ele o primeiro a avisar, no 25 de abril de 2018, “já Trumpo tinha sido eleito”, que havia um novo risco no horizonte chamado populismos, “e muito boa gente (António Costa) disse, eu não vejo isso”.

Sete anos depois, Marcelo insiste que “atrasos e vazios na resolução de problemas sociais prementes têm um peso enorme”, porque “aos radicais basta o protesto” e se os partidos clássicos se limitam “a jogar à defesa”, mais preocupados em “discutir projetos de poder do que projetos de futuro”, quem cresce são os extremos. E a perda, a prazo, toca a todos.

“Há um momento em que a normalização do que surgiu para dividir a direita clássica atinge o centro, depois o centro esquerda e depois a esquerda”, alerta o Presidente, invocando o exemplo dos Países Baixos em que, já a jogar à defesa, “uma coligação entre vários partidos conseguiu resistir contra um” (da direita radical), até que “esse um ganhou as eleições”.

A culpa, insiste Marcelo, é dos incumbentes nos últimos anos, que se foram segurando no leme com demoras, atrasos e vazios e “os vazios são preenchidos por quem aparece”. Na sua análise, não há muito tempo a perder - “pode-se aguentar uma década” - mas “o cansaço com os partidos tradicionais é tão patente” que o Presidente admite revoluções sistémicas inevitáveis: “países como a França ou a Itália podem estar perto de uma reforma constitucional”.

Sem grandes otimismos, Marcelo Rebelo de Sousa deixou uma sugestão para dentro de portas: que os partidos aproveitem a campanha eleitoral de dois meses que têm pela frente para saltar dos jogos de poder para o confronto de projetos, conteúdos e soluções para os problemas pendentes.

Para quem está à esquerda do PSD, ficou o conselho: não pensem que o avanço de André Ventura, por muito que agora favoreça o PS, pode descansar os democratas e a saúde da democracia e do país.

O pano de fundo desta conversa foi uma viagem pelos principais focos de tensão mundial. Nos Estados Unidos, Marcelo antevê que um eventual regresso de Trump será uma boa notícia para Putin - “Trump não vai mudar nada, vai repetir”, o protecionismo, a posição anti-UE, anti-ONU, anti agenda do clima, anti migrações.

Na Ucrânia, teme que o tempo ao dispôr de Putin, a quem interessa “esperar pelas eleições americanas”, contribua para “cansar as opiniões políticas” internacionais, penalizando o país invadido. E a isto somam-se as divisões numa União Europeia a várias vozes, onde já se fala da entrada da Ucrânia na UE apenas em 2032, “uma eternidade”.

Na Europa, Marcelo lamenta as demoras (foi “muito lenta a aprovar plano para refugiados”) e as divisões e, num tom pessimista, pede que não se esqueçam da componente social.

Nas eleições europeias de junho, o Presidente gostaria de ver concretizada uma oportunidade para se debater a importância de não deixar esboroar o projeto europeu - “deve ser um tema central”. E também aqui os partidos clássicos medirão forças com os extremos, sejam de direita, sejam de esquerda.

Marcelo não o disse, mas o aviso que deixou ao PS sobre o ‘papão’ PSD/Chega também vale para as europeias. É q traçando uma linha entre europeistas convictos e críticos do projeto europeu, Ventura não será o único mau da fita.