O que se passou no país nos últimos dias e o que tanto quanto se pode prever ocorrerá nos próximos, suscita para já umas breves notas.
Não sabemos qual será o desfecho da investigação que estará em curso envolvendo o Primeiro-Ministro. Esse é um problema que está nas mãos da Justiça e sobre isso, enquanto o processo não estiver concluído, seria prematuro e insensato fazer qualquer consideração.
Em todo o caso, no plano político, o pedido de demissão com base na ideia de que um Chefe de Governo não pode estar sob suspeita é compreensível. Assim como é compreensível que esse pedido de demissão seja aceite pelo Presidente da República.
Já é menos compreensível, tanto no plano político como constitucional, que os efeitos da demissão sejam protelados no tempo de acordo com o calendário que o Presidente da República considera conveniente para a gestão da crise política que foi aberta. O que dispõe a Constituição é que a demissão do Governo ocorre com a aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro. Consequentemente, a partir do momento em que o Presidente da República aceite o pedido de demissão – o que foi anunciado na própria manhã em que o Primeiro-Ministro o apresentou – o Presidente só tem de mandar publicar o decreto de aceitação e consumar a demissão do Governo que passaria a exercer funções de mera gestão.
Não foi isso que sucedeu. O Presidente, com a invocação de que pretende ver o Orçamento do Estado aprovado, o que só ocorrerá no próximo dia 29, decidiu protelar até meados de dezembro os efeitos da demissão anunciada, mas não consumada, e até lá o Governo vai permanecer em plenitude de funções, ou seja, demitido ma non troppo.
Quando for publicado o decreto presidencial de aceitação da demissão do Primeiro-Ministro, o Governo ficará em gestão e a Assembleia da República manter-se-á na plenitude funções por mais um mês até ser dissolvida, dado que, tendo o Presidente da República decidido (com toda a legitimidade) a sua dissolução, entendeu que ela só deveria ocorrer em meados de janeiro porque tendo tomado a decisão de que as eleições antecipadas só devem ocorrer em 10 de março e a Lei Eleitoral para a AR dispõe que as eleições em caso de dissolução devem ser convocadas com a antecedência mínima de 55 dias, a dissolução fica prometida para daqui a dois meses. Não é a primeira vez que o calendário da dissolução é afeiçoado em função da data desejada para a realização das eleições antecipadas. O mesmo aconteceu entre 2021 e 2022, mas não deixa de ser uma interpretação muito criativa da Constituição.
A decisão de dissolver a Assembleia da República é, em si mesma e nas atuais circunstâncias, política e constitucionalmente legítima. É certo que não seria inconstitucional a nomeação de outro Primeiro-Ministro que tivesse apoio parlamentar, mas seria politicamente muito contestável, como foi a nomeação de Pedro Santana Lopes aquando da demissão de Durão Barroso.
A decisão de convocação de eleições antecipadas é politicamente a mais adequada e não se compreenderia que o mesmo Presidente da República que dissolveu a Assembleia da República por muito menos no final de 2021, sem que nada o obrigasse a fazê-lo, e só porque tinha ameaçado com a dissolução se a Proposta de Orçamento para 2022 não fosse aprovada, não dissolvesse agora a Assembleia da República perante a demissão do Primeiro-Ministro.
Não deixa, entretanto, de ser curioso como, não só o PS, mas também os partidos da direita e pelos vistos também o Presidente da República, fazem questão de que o Orçamento seja aprovado.
É compreensível que o PS queira ver aprovado o Orçamento proposto pelo seu Governo. Podemos também admitir que o Livre e o PAN que se abstiveram na generalidade à espera de ver alguma proposta sua, por pequena que seja, aprovada na especialidade a título de bónus de abstenção oferecido pela maioria, queiram ver a proposta aprovada. Mais significativo, contudo, é que os partidos da direita, PSD, IL e CH, que chamaram tudo à proposta de Orçamento, não se incomodem com o ajustamento forçado do calendário político para garantir a sua aprovação.
É certo que vão votar contra a proposta de Orçamento e vão vituperar o aumento do IUC se ele no final se confirmar, mas não estão verdadeiramente contra uma proposta de Orçamento que foi talhada à medida das reivindicações dos patrões e dos grupos económicos e que deixa sem resposta os mais graves problemas que afetam os serviços públicos, os trabalhadores e, em geral, as camadas sociais mais desfavorecidas.
Afirmou Luís Montenegro que, se o seu Partido chegar ao poder com este Orçamento, apresentará um Orçamento retificativo. Estou certo de que, se o povo português lhe desse essa oportunidade – e espero que o não faça – para melhor não retificaria nada e para pior também não retificaria muita coisa. Afinal, se este Orçamento não é de esquerda, para que quereria a direita outro Orçamento?