Política

Lula no país dos portugueses com a Ucrânia no centro das atenções

Num sábado soalheiro, em que tudo promete boa disposição, o encontro entre Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa ficou marcado pela tentativa dos chefes de Estado de corrigirem o “tiro” dado pelo Presidente brasileiro com as suas declarações sobre a invasão da Ucrânia e o papel da União Europeia no fomento do conflito armado. Sem esquecer a polémica à volta da cerimónia do 25 de Abril

NUNO BOTELHO

No dia exato em que a História oficial diz que passaram 523 anos sobre a data em que as caravelas portuguesas aportaram na costa brasileira, os presidentes do Brasil e de Portugal reuniram-se em Lisboa. Para trás fica a discussão sobre se foi uma invasão violenta ou um descobrimento amigável: neste sábado de sol, o que interessa aos chefes de Estado dos dois países é alimentar as boas relações entre o Brasil, o maior país da América do Sul, e Portugal, “o país irmão” e a “porta de entrada para a Europa”.

Um Lula da Silva algo tenso e um Marcelo Rebelo de Sousa muito descontraído, acompanhados pela primeira dama brasileira, Janja, responderam a apenas quatro perguntas dos jornalistas. No centro de todas as atenções estiveram as declarações do Presidente brasileiro sobre a guerra na Ucrânia: aos brasileiros, interessava saber porque Lula manda o seu ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual assessor, Celso Amorim, para a Ucrânia e não se desloca ele próprio a Kiev. Pelos portugueses, a preocupação era a de saber se Portugal, dadas as boas relações com o Brasil, seria usado como um interlocutor junto da União Europeia para corrigir o mal estar causado pelas afirmações de que os europeus estavam a fomentar a continuação do conflito.

Do ponto de vista da política interna, ambos os países têm preocupações específicas. No Brasil, a grande dúvida é a de saber se o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), envolvido recentemente nas invasões dos poderes democráticos brasileiros a 8 de janeiro, se vai manter nas mãos das Forças Armadas ou se passará para a tutela civil.

Aos portugueses, o que interessava era esclarecer a razão da pressa de Lula da Silva de partir de Lisboa rumo a Madrid, depois de discursar na Assembleia da República, mas sem assistir à cerimónia de comemoração dos 49 anos do 25 de Abril.

Feitas as perguntas, as respostas nem sempre foram claras: perguntas sobre os problemas internos do Brasil em Portugal é uma atitude incorreta, disse Lula da Silva, garantindo que decidiria sobre estes temas no regresso. Sobre a guerra da Ucrânia, Lula tentou corrigir as declarações, dizendo que condenava a invasão efetuada pela Rússia, recordando os votos do Brasil na ONU, mas sublinhou que o Brasil não quer a guerra, nem quer participar na guerra, mas encontrar um grupo de pessoas que se disponham a conversar para encontrar a paz. Se os dois países envolvidos não querem parar com o conflito, alguns países vão ter de se sentar para encontrar "uma forma de fazer paz". “Eu nasci na minha vida política negociando e sempre acreditei que era possível encontrar uma solução.”

Já Marcelo Rebelo de Sousa recordou a posição portuguesa contra a violação do Direito Internacional, mas disse acreditar que é possível recorrer à decisão da ONU de que sejam retiradas as tropas russas da Ucrânia, mas também um ponto de partida para a procura de uma afirmação duradoura e justa do cumprimento do Direito Internacional. E quanto ao papel do Brasil neste conflito, caberá ao Presidente Lula da Silva definir com base nas suas próprias prioridades. Mas, sublinhou, "Portugal e o Brasil estão sempre do mesmo lado" na procura da paz. Lula aproveitou a deixa para dizer que "compreende o papel da Europa mas quer que as pessoas compreendam o papel do Brasil". E voltou a dizer que a guerra dele é "contra a fome". "Eu não fui à Rússia e não vou à Ucrânia, só vou quando houver possibilidade de paz. Eu não quero agradar a ninguém, eu quero encontrar uma forma de colocar os dois à mesa", concluiu Lula da Silva.

Sobrou ainda espaço para falar na cerimónia de celebração do 25 de Abril e Lula da Silva foi questionado por uma jornalista portuguesa sobre se se sentiu “indesejado”, o que teria levado a decidir partir de Portugal mais cedo. Lula disse que saiu do Brasil "com a agenda feita" - o que não corresponde 100% à verdade, afinal, à última da hora a viagem foi antecipada e existem, inclusive, dois dias sem qualquer agenda determinada - e que "não vê nenhum problema" na agenda dele. E mais não disse.

Coube a Marcelo Rebelo de Sousa sublinhar a escolha da data, pelo simbolismo do 22 de Abril, como dia do encontro entre os dois povos, além da proximidade da comemoração do 25 de Abril como pontapé de saída na independência dos demais países lusófonos.

O Presidente português assumiu a autoria teórica da conjugação de datas simbólicas - "pareceu uma fórmula inteligente e feliz de a Assembleia da República ao mesmo tempo acolher o Presidente deste primeiro grande momento de viragem da história do império português e depois celebrar aquilo que foi uma segunda vaga de independência" - e garantiu que já esperava o clima polémico que veio a verificar-se, por conhecer muito bem o ambiente dos dois países e os protagonistas envolvidos.

NUNO BOTELHO

Amigos e irmãos

O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa iniciou-se com a recordação do convite feito logo a 1 de janeiro, assim que Lula da Silva tomou posse. E recuperou o "rasgado elogio" de Cavaco Silva a Lula, "uma das grandes figuras do nosso tempo e um grande amigo de Portugal". "Eu não diria melhor", comentou o Presidente português. "Sejam bem vindos a esta pátria, que tanto deve a centenas de milhares de amigos brasileiros", afirmou Marcelo.

Mostrou-se disponível para ajudar os brasileiros presos no conflito do Sudão e aproveitou a deixa para introduzir o tema da invasão da Ucrânia, sem abrir mão de uma palavra em relação à posição de Portugal sobre o país invadido. Mas fez a ponte com a noção de um mundo multipolar e à importância da relação entre a União Europeia e o Mercosul, "um acordo tão importante para os dois poderes como para todo o mundo".

"Sejam bem vindos neste tempo preciso de que portugueses avistaram pela primeira vez as terras do Brasil" e nas proximidades da celebração de mais um aniversário do 25 de Abril. Sem esquecer os 200 anos da independência do Brasil, pelo imperador brasileiro, filho do rei português. Mas "agora é tempo de olhar para a frente, de alargar horizontes". E que o acolhimento seja do tamanho do "mundo de afetos", para lá do que "de menos bom fizemos no passado", disse Marcelo Rebelo de Sousa. Em nome de portugueses e brasileiros, "povos irmãos para sempre".

Ao discurso afetuoso do "querido amigo Marcelo Rebelo", o Presidente Lula da Silva, com uma voz algo tremida, disse que "é sempre com grande prazer que se reúne com os amigos portugueses", numa ocasião especial, que é a de ter sido a primeira visita de Estado do seu atual mandato, momento em que aproveitou para fazer uma graça sobre o facto de o Presidente português ter aproveitado a presença em Brasília, nos dias em que lá esteve para assistir à posse de Lula da Silva. Marcelo Rebelo de Sousa foi nadar no lago artificial da capital brasileira e é preciso ter cuidado, apareceu lá um jacaré, alertou Lula, aconselhando Marcelo a não repetir a proeza.

"É preciso que a gente seja mais ousado, seja mais desaforado, que os nossos ministros conversem mais, discutam mais", disse Lula da Silva, para completar: "Nós conversamos pouco." "É verdade que Portugal descobriu o Brasil em 1500, mas é verdade que os brasileiros descobriram Portugal no século XXI". E não só "gente pobre, mas muita gente rica". Aproveitou também para falar do "clima de ódio criado nos últimos cinco anos" e do recrudescimento da extrema-direita, seja na Europa, seja no Brasil.

Prometeu que o Brasil será duro no combate à destruição ambiental e ao garimpo ilegal e às agressões aos povos indígenas. Reconheceu, também, que é preciso criar "uma nova governança mundial" para que as decisões sejam efetivas e voltou à sua campanha para que o Brasil integre o Conselho de Segurança permanente das Nações Unidas e o fim do direito de veto naquele órgão.

"Ao mesmo tempo que o meu governo condena a invasão territorial da Ucrânia, defende a existência de uma solução negociada para a paz", disse Lula da Silva, como se realmente sempre tivesse condenado publicamente a entrada da Rússia em solo ucraniano a 24 de fevereiro de 2022. E não terminou sem falar na necessidade de se reconhecer o Português como língua oficial na ONU: "Eu acho uma falta de respeito. Dos outros connosco e de nós mesmos connosco." E, antes do abraço, prometeu que a relação entre os dois países "vai melhorar muito".