Tendo acabado de escrever o que me pareceu essencial sobre um homem cuja partida deixa este mundo mais pobre, não resisto a evocar os bastidores da minha relação profissional com ele.
A partir de outubro de 2009, passei a desempenhar as funções de editor da secção Internacional do Expresso. Nessa altura, nas pouco mais de três páginas em que era preciso tentar resumir e interpretar um mundo que fervilhava de mudanças e interrogações, tinha, além do noticiário e da reportagem possíveis, que paginar duas crónicas, a de Miguel Monjardino (ainda hoje publicada) e a do embaixador Cutileiro.
Trazer aos leitores do Expresso as reflexões de um diplomata que vira Mandela sair da prisão e ascender ao poder ou a Jugoslávia afogar-se num mar de sangue era um privilégio. Concretizar essa missão era um pesadelo porque explicar ao embaixador que os títulos não podiam ter mais que duas linhas a 15 batidas, ou que a prosa tinha rigorosamente que ter 2800 caracteres era mais ou menos o mesmo que discutir as subtilezas da Lei do Fora de Jogo com alguém que nunca assistira a um desafio de futebol.
No que repetia à visão da actualidade estávamos em trincheiras tão opostas como as tropas aliadas e alemãs na Flandres de 1918. Para ele a actualidade não era o que tinha acontecido ou se esperava que fosse acontecer naquela semana mas os assuntos que à luz da sua mundividência entendia merecedores de atenção.
Exactamente o oposto do que se passava com Miguel Monjardino com quem eu discutia apaixonadamente ao telefone o que mais interessaria analisar nessa semana. Eram cinco minutos de conversa bem-humorada sobre as diabruras dos Putin e Kadhafi daqueles tempos e que inevitavelmente terminava com a análise do jogo do Benfica na jornada anterior. Um hábito que não perdermos e que mantemos na medida do possível, mesmo depois de eu ter cessado funções e me ter reformado.
Mas, sem prejuízo das rugas e cabelos brancos que a crónica “O Mundo dos Outros” me trouxe, aplaudo de pé o fio de prosa do nosso distinto embaixador, levado a requintes ditirâmbicos quando nas suas prosas necrológicas, qual Camilo renascido, construía parágrafos do tamanho de uma coluna inteira mas onde sujeitos, predicados e complementos directos engrenavam como os carretos da caixa de velocidades de um Rolls Royce Phantom. Até sempre embaixador!