Política

Schuman não passou por Karlsruhe 

Celebramos hoje os 70 anos da declaração Schuman que lançou a ideia da União Europeia que temos hoje.

Robert Schuman acreditava que só um órgão supranacional podia levar os países desavindos a trabalharem juntos em prol de um interesse comum. Ao contrário dos outros pais fundadores da Europa, Schuman defendia uma Comunidade de estados nacionais, culturalmente diferentes, mas unidos por valores comuns. A sua visão assentava numa integração, passo a passo, das políticas sectoriais, o que levaria a uma solidariedade institucional.

Se muitas políticas são hoje em dia decididas ou coordenadas a nível europeu, mas solidariedade nem sempre se tem manifestado da forma esperada e visível para os nossos cidadãos.

É curioso lembrar que a conferência de imprensa de 9 de Maio de 1950 para anunciar a declaração Schuman foi um fracasso. Convocada à última hora a sala de imprensa tinha mais funcionários do Quai d’Orsay do que jornalistas. Nenhuma televisão ou rádio cobriu o evento, o que obrigou Schuman a repetir a sessão para efeitos mediáticos.

Há quem veja neste incidente um símbolo da eterna dificuldade da UE em comunicar o que faz de bem, por oposição ao sucesso comunicacional daqueles que culpam Bruxelas das suas incompetências nacionais.

Por coincidência (ou não) foi à margem desta efeméride e no meio da maior crise económica das nossas vidas que o Tribunal Constitucional Alemão decidiu esta semana um acórdão crítico, que entrará para a história pelos maus motivos.

Os juízes de Karlsruhe criticaram o Banco Central Europeu (BCE) por este ter comprado dívidas públicas dos países europeus na altura da crise financeira pediram uma justificação da proporcionalidade das medidas tomadas em 2015. Em termos simples, os juízes não gostaram daquilo que Mario Draghi celebrizou com a sua celebre frase: “whatever it takes” dando o sinal que o BCE faria tudo o que fosse necessário para estancar a crise. Foi graças a essa frase que conseguimos sobreviver. Numa altura de ainda maior incerteza esta decisão vem acrescentar ainda mais incerteza a estes tempos já tão incertos.

Quanto a mim, esta decisão abre pelo menos dois precedentes políticos graves: Primeiro, esta decisão alemã ignora deliberadamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE que já tinha reconhecido a legalidade da acção do BCE. Assim é posto em causa o princípio da primazia do direito europeu sobre o direito nacional, reconhecido nas constituições dos países da UE. Abre-se assim uma caixa de Pandora para outros tribunais nacionais ignorarem oportunamente o direito europeu, um cenário facilmente imaginável hoje em dia na Hungria ou na Polónia.

Segundo, o BCE teve a coragem de aprovar recentemente um esquema similar de compra de dívida pública de 750 mil milhões para poder estancar a crise atual. Nesse contexto, esta decisão do Tribunal alemão não deixa de ser vista como uma forma pouco subtil de pressionar o BCE, através do banco central alemão, a limitar o seu ímpeto de intervencionismo monetário. Representa a linha dura daqueles que acreditam que se o BCE está sempre disponível para comprar dívida pública os governos ficam sem incentivos para manter as contas públicas em ordem.

Dificilmente poderia haver pior momento para o Tribunal tomar esta decisão, cujos efeitos jurídicos, mas sobretudo políticos, podem pôr em perigo a própria União Europeia. A justiça dever ser cega e independente, mas não pode viver alheada do contexto e dos timings em que toma as suas decisões.

No meu gabinete em Bruxelas tinha na minha secretaria a primeira frase da declaração Schuman que diz o seguinte: “A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos que estejam à altura dos perigos que a ameaçam”. Se Schuman estivesse vivo e tivesse passado por Karlsruhe teria certamente relembrado aos juízes que alguma criatividade e bom senso pode ser a única maneira de salvaguardar o nosso futuro.

Carlos Moedas

Antigo Comissário Europeu