Política

De que acusam Vitalino Canas? (E como o defendem)

José Sócrates é o principal ativo tóxico no percurso de Vitalino Canas, mas não o único. É pouco provável que o PCP ou o Bloco de Esquerda esqueçam o papel de provedor da Associação das Empresas de Trabalho Temporário que o socialista desempenhou. David Justino é a única voz à direita que iliba Canas do estigma socrático, mas há “desconforto” na bancada social-democrata. Sendo uma eleição por dois terços dos deputados, exige-se pelo menos uma posição favorável das bancadas do PS e do PSD. Rio poderá mostrar um cartão vermelho ao Governo

TIAGO MIRANDA

Em política, currículo e cadastro podem, por vezes, ser a mesma coisa. Prova disso será a votação na Assembleia da República de Vitalino Canas, esta sexta-feira, para um dos dois lugares vagos de juiz do Tribunal Constitucional. (Clemente Lima vai a votos, mas a biografia política deste terá, na teoria, menos peso no resultado final.) Caso todas as críticas ouvidas nos últimos dias se traduzam em votos contra, de nada terão adiantado ao ex-secretário de Estado da Presidência e ex-porta-voz do Governo de José Sócrates as juras de idoneidade que fez na Comissão de Assuntos Parlamentares. O nome do ex-primeiro-ministro socialista é o principal ativo tóxico no percurso de Canas, mas não só.

A matemática, neste momento, não está a favor do socialista. Os nomes indicados para o Tribunal Constitucional são eleitos por voto secreto na Assembleia da República, votando cada deputado de forma individual, independentemente de qualquer orientação da respetiva direção da bancada. Ora, sendo uma eleição por dois terços dos deputados, exige-se pelo menos uma posição favorável das bancadas do PS e do PSD.

Tanto à esquerda como à direita, há críticas a cair nas costas de Canas. A Iniciativa Liberal já anunciou que vai votar contra e descreveu a escolha de Canas como “socialismo distraído”; o PCP ainda não se pronunciou, mas tudo indica que será contra. Os deputados do CDS e PSD terão liberdade de voto.

Fonte oficial da direção do PSD avisou, logo na segunda-feira, que os deputados “não estão confortáveis” com o nome do socialista. O Governo de António Costa não cumpriu todas as formalidades. O PS rompeu com a “tradição democrática” de consultar e chegar a um consenso com maior partido da oposição quanto os nomes propostos para o Tribunal Constitucional, denunciou Manuela Ferreira Leite. A ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz também se pronunciou contra a nomeação de Vitalino Canas. Não é correto “passar de deputado a juiz do TC”, disse.

Apesar do “desconforto” sinalizado, David Justino, vice-presidente do PSD, disse, na quarta-feira, que não se deve estigmatizar Vitalino Canas por ter pertencido ao Governo de José Sócrates. “O estigma socrático tem um peso difusão e contaminação é pior do que o coronavírus. É óbvio que as pessoas não podem ser marcadas pelos cargos que exerceram em termos institucionais. Se fosse assim, não sei quantos ministros não podiam tomar posse. Volto a dizer: tem que se ter muito cuidado e ter um trabalho de preparação para evitar este tipo de situações”, afirmou.

Justino não está sozinho na defesa de Vitalino Canas. Esta sexta-feira, Gonçalo Sopas de Melo Bandeira, militante do PSD, defende, num artigo publicado no “Diário do Minho”, a nomeação de Vitalino Canas. Também social-democrata Luís Marques Guedes assumiu, na quarta-feira, “a título pessoal” que desejava que o candidato merecesse a “confiança” dos deputados.

Críticas à esquerda

Manuel Alegre, Ana Gomes, Henrique Neto. Nenhum destes socialistas está satisfeito com o nome Vitalino Canas para o TC. Em declarações à revista “Sábado”, Alegre disse que Canas “não é uma boa escolha” e que “está muito conotado com o mundo dos negócios”. “Não me parece que seja o caminho mais acertado para a transparência e para a limitação da promiscuidade entre as instituições e os negócios, sobretudo numa instituição como o Tribunal Constitucional", atirou. Ana Gomes juntou-se aos que dizem que Canas “não tem perfil”. Mais: “É muito estranho que a proposta para o Tribunal Constitucional implique uma redução do número de mulheres.” O mais cáustico de todos foi Henrique Neto. Segundo o ex-deputado socialista, Canas tem “um passado e uma história que não abona a favor da sua independência”. Um passado, leia-se, com José Sócrates.

Na Comissão de Assuntos Parlamentares na quarta-feira, Canas fez questão de frisar que já “há anos” que não tem contacto com o ex-primeiro-ministro. Acontece que, mal o nome do socialista veio a público, o passado veio à superfície: em 2015, antes das eleições legislativas que oporia Passos Coelho a António Costa, Vitalino Canas esteve presente num jantar com José Sócrates e uma fotografia do encontro foi, por estes dias, partilhada amplamente nas redes sociais.

O Bloco de Esquerda, por sua vez, criticou a opção do PS por Vitalino Canas como uma “escolha autossuficiente” e defendeu ainda que o socialista “será a voz da precariedade no Tribunal Constitucional”, dado que este foi, nos últimos anos, provedor da Associação das Empresas de Trabalho Temporário (ETT). (Em 2008, também o PCP questionou a nomeação de Canas para a ETT.) “O PS entendeu como bastante a sua autossuficiência para a indicação de nomes de juízes para o TC. É uma escolha do PS, mas demonstra inequivocamente que rompe com a ideia de continuidade da situação política da anterior legislatura”, frisou Pedro Filipe Soares.

Numa tentativa final de se distanciar do seu currículo político, Vitalino Canas afirmou esta semana que andava “há 40 anos” a preparar-se para ser juiz do Tribunal Constitucional. “Ser juiz do Tribunal Constitucional é um bocadinho diferente do que exercer funções políticas”, disse. Hoje, todavia, é pouco provável que seja dia de festa. O PSD poderá muito bem dar um cartão vermelho ao Governo.