Politólogo e Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Luís de Sousa considera que Portugal está a marcar passo na prevenção e combate à corrupção por falta de vontade política. Tem organismos "ocos", "mal formatados" e sem meios – “alguns se desaparecessem nem dávamos conta”, defende o especialista na área da corrupção e fundador e ex-presidente da representação portuguesa da Transparency International.
“Faz-se demasiadas vezes fiscalização-carimbo”, lamenta. Afirma que o PS de António Costa “está mais interessado na realpolitik" e olha para a corrupção como questão lateral, não está interessado em investir nem no seu combate. Considera ainda que os partidos “andam a brincar com o fogo" e a abrir a porta ao populismo ao desprezar as questões de ética. Defende ainda que os diplomas de prevenção e combate à corrupção que se arrastam há dois anos no Parlamento são processos legislativos que têm tudo para correr mal.
Portugal tem ficado mal na fotografia na avaliação das instituições internacionais no combate e prevenção da corrupção. A OCDE fez recentemente um retrato negativo do país - diz que é preciso mais investimento financeiro no combate ao crime económico, mudar o sistema para evitar o abuso dos recursos e criar um tribunal especializado em corrupção. A GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa) veio dizer há duas semanas que Portugal não está a aplicar as recomendações desta organização no combate à corrupção. Há um problema grave de corrupção em Portugal?
Nunca vamos estar em condições de saber qual o volume de corrupção, mesmo se estivermos a guiar-nos pela atuação da Justiça. A Justiça pode não ter detetado tudo, pode haver inúmeras situações que acabam por ser arquivadas por insuficiência de prova, porque é um crime complexo. A classe política continua a balizar-se pelos mínimos, numa lógica de que quando determinada atividade ou comportamento não estão proscritos por lei, então são aceitáveis. Já a opinião pública condena práticas inaceitáveis no exercício de funções mesmo quando não são ilegais. Mas nem sempre é unânime, muitas vezes divide-se em função de quem é o ator, de que partido é, se é alguém com quem se identifica…
Toleramos mais a corrupção quando estamos mais próximos? Isso aplica-se às autarquias, onde assistimos recentemente a uma onda de detenções e processos?
Sim. Há duas coisas, há a tolerância e há o medo. A tolerância daqueles que beneficiam ou têm a expectativa de vir a beneficiar. Ou para aqueles que consideram que as matérias de ética são menos relevantes que os resultados económicos. A classe política sabe disso, e não se sente motivada a mudar nada. Se há tolerância, para quê investir em reformas do sistema politico, e em reformas da Justiça que possam melhorar a qualidade da democracia.
Portugal não está a investir no combate à corrupção?
Não. Estamos aparentemente numa fase saudável da economia, Portugal tem condições para investir mas não o faz. E devia fazê-lo, porque isso cria sustentabilidade do ponto de vista económico. Sem boas instituições, sem uma Justiça a funcionar bem, estamos a afetar o clima de negócios. É óbvio que assim atraímos empresários que vêm de regiões bem mais complexas do ponto de vista da corrupção, como a China, o Líbano, a Rússia, ou o Brasil, que são os grandes clientes do visto gold. Por alguma razão será. É óbvio que isto é o paraíso. Um clima de negócios onde fique claro que o combate à corrupção não é uma prioridade pode interessar a determinado tipo de investidores, os risk taker, investidores que estão habituados a negociar nesses contextos. Para as empresas que querem certeza, previsibilidade, esta maior tolerância face à corrupção não interessa.
António Costa já disse que o combate à corrupção vai ser uma prioridade na próxima legislatura.
Isso é conversa fiada. No programa do atual governo o combate à corrupção era uma linha. António Costa é muito realpolitik. ‘Vamos interagir com novas economias, estamos preocupados é com os resultados económicos’. O que é positivo, mas esta estratégia com o descuidar da dimensão institucional hipoteca o futuro.
Quando veio para Portugal tentou criar um Observatório de Transparência e Combate à Corrupção e não houve muito apoio por parte do Parlamento e dos partidos políticos...
Não houve. Portugal foi dos últimos países da Europa Ocidental a ter uma representação da Transparency Internacional. Tive no entanto o apoio de algumas lideranças e partidos que se interessaram pelo tema. Foi o caso, por exemplo do BE, com Francisco Louçã, que fazia da corrupção campo de batalha. A liderança socialista de António José Seguro também era próxima do que fazíamos, ouvia-nos, e inclusive procurava inserir o tema dentro dos processos que estava a discutir, mas foi afastada. Há também pessoas no PSD que se interessam pelo tema, como é o caso de Miguel Poaires Maduro, que tem insistido na necessidade de a classe política distinguir entre o que é a responsabilidade penal e o dever ético. Aqui e ali nos partidos há estas vozes, mas são isoladas - e por vezes até marginalizadas.
Não acredita que irá haver uma mudança na prevenção da corrupção...
Não vão mudar, porque nunca definem uma estratégia, no sentido de pensar os mecanismos existentes. Arrastam-se há dois anos no Parlamento propostas dos partidos sobre esta matéria.
É isso que diz a Greco...
Este puxão de orelhas já vem sendo dado há dois anos. É preciso ver que o relatório da Greco é anual e referente a 2018. Há dois anos que temos aqueles diplomas à espera. É um processo legislativo que tem tudo para resultar mal. Não há vontade política para alterar questões parlamentares, em temas como, por exemplo, o relacionamento dos partidos políticos com os escritórios de advogados. A Greco reporta também problemas na esfera política. Falam de um controlo mais eficaz nas declarações patrimoniais e de rendimento, com um quadro sancionatório adequado, um controlo que nunca existiu. Nunca houve um relatório anual, e nós temos esta situação em várias peças do sistema. Por isso é que digo que não vale a pena falar de melhorar o combate à corrupção sem pensar numa estratégia ou como é que os organismos que têm competência nesta matéria estão a funcionar. Tem de se fazer um sistema nacional de integridade. Fizemos nós no TIAC - Transparência e Integridade, Associação Cívica em 2012. Nunca mais foi feito outro. E entretanto temos novos organismo criados, como o Conselho de Prevenção para a Corrupção no Tribunal de Contas.
O Conselho de Prevenção funciona?
Não muito. Agora já vão prestando contas anualmente. Não sabemos o que é que estes organismos andam a fazer. Mas depois são tão minúsculas e com tão poucos recursos. A Entidade das Contas que está no Tribunal Constitucional se fechasse agora ninguém dava por nada. Sobre as declarações patrimoniais também ninguém sabe como irá ficar, está num impasse, à espera que os diplomas sejam aprovados. A questão das regras de conduta, as prendas, o relacionamento com partes externas ao Parlamento, nomeadamente a pertença a escritórios de advogados, as portas giratórias, as incompatibilidades após o exercício de funções… tudo isto está em águas de bacalhau. Por isso, defendo que o trabalho legislativo está a ser mau. Há vários diplomas à espera de aprovação, todos eles feitos com o objetivo de apresentar qualquer coisa, só para dizer que se está a fazer algo. Não há um trabalho prévio para se saber o que está a ser feito em outros países sobre esta matéria, e como é que chegamos até aqui.
Tem defendido que um dos grandes catalizadores da corrupção é o financiamento dos partidos. Continua a ser um cancro?
É. Toda a regulação de comportamentos éticos na política está de rédea solta. Está sem norte. Fomos criando alguns organismos para regular a ética na política mas ela está fraca, porque tanto os normativos como a fiscalização são fracos. Na verdade ou foram mal construídos ou têm recuado em alguns casos, como aconteceu por exemplo na lei do financiamento dos partidos, cujas alterações têm sido para pior. Houve um relatório que foi pedido pelo Greco, e elaborado em resposta a isso, que refere que há relações dos partidos com uma série de entidades, nomeadamente a banca, entre outras, que não estão devidamente escrutinadas. É uma fiscalização-carimbo. Anualmente os partidos enviam as contas e carimba-se. Mesmo assim conseguem ser sancionados por não estarem em conformidade com as regras. Não há praticamente um ano em que não sejam aplicadas coimas aos partidos por má prestação de contas. Nem os mínimos são conseguidos, quanto mais tudo o que está para lá das contas que são prestadas à entidade fiscalizadora. Isto é a regulação no sector político. Sabemos que é uma autorregulação. O legislador legisla em causa própria. Todo o organismo que fiscaliza pode ter esse viés à partida, o de já estar concebido de uma forma a não apanhar nada… Isto não é de agora, é um padrão da forma como a classe política portuguesa tem legislado em matéria de combate e prevenção da corrupção.
Não usamos os modelos internacionais...
Queremos ser os primeiros a assinar convenções internacionais, para dizer que estamos nesta batalha, mas depois o que acontece é que não queremos mudar nada. As primeiras recomendações ignoramos, depois recebemos o alerta, e voltamos a empurrar com a barriga. Isto é, mandamos para uma comissão, fica ali uns meses ou um ano, neste caso já vão dois anos. Vamos respondendo aqui e ali, mas a nossa tradição é responder sempre à última. Fazemos umas coisas pela rama — e logo que o fiscal desaparece, recuamos.
Então em 45 anos de democracia pouco evoluímos...
O padrão infelizmente tem sido este. Há uma tendência para o folclore do combate à corrupção, de se partir para grandes pacotes de transparência, montanhas que parem ratos. Há para mim um problema maior, que está a jusante. Não podemos esperar que essa regulação que venha a ser criada seja por si só suficiente, porque não vai ser. Isto não funciona se o regulador não estiver consciente de que tem de mudar o comportamento.
É para seu bem...
Basta ver a vaga de populismo que está a haver na Europa. Os cidadãos estão cansados dos partidos tradicionais.
O que está a dizer é que se os partidos não se preocupam com a corrupção dentro do sistema vão arrepender-se...
Têm de se preocupar dentro de casa, e começar por aí. Em vez de exporem a situações ridículas - podem até ser questões menores - mas agora há uma reação muito negativa da opinião pública. Os níveis de confiança nos políticos são baixíssimos. Há uma reação muito negativa da opinião pública. O Eurobarómetro - tanto o flash eurobarometer, como o special eurobatometer - feito em outubro de 2017 revelava que 72% dos cidadãos consideram que o abuso de poder para benefício privado é elevado entre partidos políticos. E 62% consideram que é frequente entre bancos e instituições financeiras. Já no caso dos empresários, 90% consideram que as ligações entre os negócios e a política são uma causa da extensão da corrupção no sistema político. Mais: 67% dos empresários consideram que não resulta do facto das regras de transparência e supervisão do financiamento dos partidos serem insuficientes. Os partidos acham que não há problema se andam a votar 30% dos eleitores, porque o sistema continua a funcionar. Continua até ao momento. Não tem havido um voto expressivo nos partidos radicais e antissistema, mas há um crescendo. Só está mesmo à espera que alguém venha com um isqueiro para atear o fogo e tenha talento para o fazer.
A situação pode ser explosiva...
Acho que os partidos estão a brincar com o fogo ao desvalorizar a ética na política. Definitivamente.
Em matéria de corrupção..
Sobretudo de corrupção política... Ou seja, de comportamentos de risco na esfera política. Continuam a achar que é trivial designar alguém para um cargo e passado dois ou três meses ter de andar a explicar porque é que o vai destituir. Andam constantemente a apagar fogos. Os governos não foram eleitos para gerir escândalos de corrupção ou de conflitos de interesse.
A Procuradora Geral da República (PGR) tem escassez de recursos, mas qualquer coisa que acontece no país, mesmo sem grande relevância, diz-se que vai pedir-se ao Ministério Público para investigar...
Esse discurso é até perigoso, porque nos tempos que correm, com a descredibilização dos partidos e da política, e com a grande expectativa que se faz do papel da polícia para levar políticos para trás das barras, favorece outro discurso, o da judicialização da política. A judicialização da política está a ser convidada pelos próprios partidos políticos. É empurrar os problemas para a PGR e não assumir que devem ser eles a resolver problemas que é a ética que tem de resolver. Antes da Justiça tem de ser a política a resolver os seus problemas através da regulação ética e sancionar todo o tipo de situações dentro do Parlamento. O Parlamento, os partidos e o Governo têm de disciplinar eticamente os seus membros. Se não partir de dentro, esqueçam a regulação ética.