Política

Frank Carlucci (1930-2018): “Se os comunistas têm sido mais inteligentes, teriam conquistado o poder”

Na altura da morte de Frank Carlucci, reproduzimos uma das últimas entrevistas que deu, a 25 de abril de 2014, ao nosso correspondente nos Estados Unidos, na qual relembrou os tempos agitados em que foi embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, entre dezembro de 1974 e fevereiro de 1978, cargo durante o qual sofreu ameaças e apedrejamentos e lidou com um país desorganizado e com forças armadas “caóticas”

Frank Carlucci com Ramalho Eanes
d.r.

A dez minutos da Casa Branca está a residência de alguém cujo poder influenciou o curso da História recente de Portugal. Até lá, serpenteiam-se colinas com vista privilegiada sobre Washington e segue-se por uma estrada remota, rodeada de floresta rasgada por ribeiros.

O rio Potomac emoldura o cenário, digno de um postal ilustrado. À chegada, uma caixa de correio enferrujada, a cerca de 100 metros da casa, identifica o morador: Frank Carlucci. É o antigo embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, entre dezembro de 1974 e fevereiro de 1978, que abre a porta. O polo branco com riscas azuis e as calças de fato de treino cinzentas dançam no corpo emaciado e denunciam a insistência do ex-político americano, de 83 anos, em aprimorar o seu ténis. "O meu jogo anda péssimo", lamenta.

Na sala de estar há um piano robusto com mais de 50 anos perto de uma das várias janelas, oferecendo "uma vista de cortar a respiração", diz Carlucci. Os olhos azuis pouco pestanejam e a memória pesquisa, em milissegundos, qualquer pormenor com dezenas de anos. Mas os tremores e alguma dificuldade em caminhar obrigam o ex-poderoso homem da CIA e do Departamento da Defesa norte-americano a sentar-se.

No cadeirão de madeira maciça, Carlucci ganha nova energia, parecendo reconquistar uma dignidade quase majestática.

Durante uma hora, numa entrevista exclusiva ao Expresso, recordou o período pós-revolucionário, revelando detalhes do seu plano de auxílio militar e financeiro a Portugal, que "acalmou os militares" e os levou a "regressar aos quartéis". Disse o que pensa sobre algumas das figuras políticas da altura, de Álvaro Cunhal, que "era demasiado estalinista e 'pouco português'", a Francisco Sá Carneiro, com quem teve um desaguisado e percebeu que tinha ciúmes de Mário Soares.

Carlucci não desmente a pressão dos EUA junto de Franco para que invadisse Portugal, nem o apoio financeiro a Soares. Sobre uma possível invasão espanhola, afirma: "Sempre tentei contrariar essa ideia e falei com o embaixador de Madrid em Lisboa, que concordou comigo. Espanha devia ser o último país a intervir em Portugal. Seria desastroso. Enviei várias mensagens ao meu Governo para não tentar envolver Espanha, mas não sei se Henry Kissinger [então secretário de Estado] prestou alguma atenção ao que lhe disse".

d.r.

Em Portugal, militares, políticos, historiadores, esquerda, direita, todos concordam que foi uma figura-chave no período após o 25 de Abril. Como avalia o seu papel?
Julgo que foi exagerado. O que aconteceu em Portugal foi verdadeiramente um movimento do povo português e dos seus líderes políticos. Eu tive sucesso em impedir que o Governo americano fizesse coisas que causariam danos. Acho, também, que consegui desenvolver algumas relações pessoais que serviram ambos os países.

Quando se refere a coisas que podiam ter causado danos, de que é que fala?
Do isolamento de Portugal na NATO.

Lendo material desclassificado do Governo americano, percebe-se que os EUA não esperavam a revolução. Porquê?
Ninguém prestava atenção. Eu ainda não tinha chegado. Portugal era um país pequeno e arrumadinho na Europa. Além disso, os EUA tinham mais com que se preocupar.

Um mês antes da revolução, Nixon ordenou aos funcionários da embaixada americana em Lisboa para que se afastassem dos spinolistas e do Movimento das Forças Armadas. Essa cautela era sinal de simpatia com o velho regime?
Não me parece que os EUA apreciassem o antigo regime, mas eu não era membro do Departamento de Estado nessa altura, por isso não posso comentar. Mas Nixon estava particularmente agradecido a Portugal, devido ao uso da Base das Lajes durante a Guerra do Médio Oriente. Henry Kissinger tinha a certeza de que Portugal se tornaria comunista. Como o antigo embaixador Nash Scott não concordava, ele procurou outro embaixador.

Como lidou com a teimosia do secretário de Estado americano?
Ele (Kissinger) tomou uma posição muito forte, segundo a qual Portugal era um caso perdido para os comunistas e que, por isso, devia ser isolado. Eu não concordava e tive várias discussões com ele. Mas, assim que ele decidiu "dar uma chance à minha estratégia", as palavras são dele, tornou-se um ótimo aliado e consegui os recursos de que precisava para restaurar o profissionalismo do exército português, ajudar nos sectores da habitação, saúde (investigação e apoio médico) e apoiar uma estrutura política democrática que não existia.

Foi difícil convencê-lo?
Não foi fácil. É um homem brilhante, não há dúvida. Está constantemente convencido da sua capacidade intelectual formidável. Fiz tudo o que pude, apresentei os meus argumentos e fiquei desiludido com ele, explicando-lhe que os seus comentários estavam a empurrar Portugal para os braços dos comunistas. Ele respondia: "Se é assim tão esperto, porque não é você a fazer os comentários em nome do Estado americano?" Eu aproveitei e disse-lhe: "Muito obrigado. É o que farei". Diria que tivemos diálogos enérgicos, dadas as divergências.

Até 28 de setembro de 1974, os EUA adotaram a posição de "wait and see" (esperar para ver). Até que ponto essa atitude ajudou a prolongar a instabilidade em Portugal?
Durante os primeiros seis meses em que estive em Portugal, os comunistas tentaram consolidar as suas posições. Não há dúvida. Foi apenas quando decidimos pressionar a realização de eleições que as coisas começaram a ficar mais claras. A partir daí, Mário Soares foi para a rua, a Igreja Católica e os padres ficaram preocupados, começando a espalhar a mensagem de que os comunistas iriam tomar o poder e confiscar as propriedades dos fiéis, e alguns dos conservadores assumiram uma linha mais moderada, em vez de procurar alguém na extrema-direita para reassumir o poder. Tudo isso se transformou num movimento do povo português.

O Presidente Gerald Ford pediu ao Papa Paulo VI uma posição mais forte sobre Portugal. O que é que esperavam que o Vaticano fizesse?
Basicamente, o que aconteceu. A Igreja em Portugal não tem uma estrutura hierárquica tão rígida como noutros países. Os padres da aldeia, por exemplo, são muito importantes. Recebem ordens dos superiores, mas não recebem instruções, entende? E isso relaciona-se com a natureza conservadora do povo português, o amor pela Igreja e o medo do comunismo. Tudo começou no Norte. Por falar em medo do comunismo, os EUA ficaram assustados quando Vasco Gonçalves assumiu o poder, ele que era classificado como comunista pela Administração Americana. Quando ele vem a Washington, em maio de 1975, e se reúne com Ford e Kissinger, eles dizem-lhe que não irão aceitar um cavalo de Troia na NATO.

O Presidente Gerald Ford pediu ao Papa Paulo VI uma posição mais forte sobre Portugal. O que é que esperavam que o Vaticano fizesse?
Basicamente, o que aconteceu. A Igreja em Portugal não tem uma estrutura hierárquica tão rígida como noutros países. Os padres da aldeia, por exemplo, são muito importantes. Recebem ordens dos superiores, mas não recebem instruções, entende? E isso relaciona-se com a natureza conservadora do povo português, o amor pela Igreja e o medo do comunismo. Tudo começou no Norte. Por falar em medo do comunismo, os EUA ficaram assustados quando Vasco Gonçalves assumiu o poder, ele que era classificado como comunista pela Administração Americana. Quando ele vem a Washington, em maio de 1975, e se reúne com Ford e Kissinger, eles dizem-lhe que não irão aceitar um cavalo de Troia na NATO.

De que forma esse cenário condicionou o seu trabalho e o que é que os EUA estavam dispostos a fazer para acabar com a ameaça? Sabendo o que ia na cabeça de Kissinger e de como ele sentia o problema, certamente que advogaria a expulsão de Portugal da NATO.
Eu concordava com ele, de que não podíamos ter um país comunista na NATO, com acesso a informação importante da Aliança. Porém, discordava quanto ao isolamento de Portugal, pois seria contraproducente. A NATO acabou por ter um papel muito importante na evolução da situação em Portugal. Uma vez fui até Bruxelas e, junto com as nossas pessoas de lá, iniciámos o plano para a brigada portuguesa. Depois disso, testemunhei no Congresso e pedi dinheiro para essa brigada. Quando trouxemos o equipamento para Portugal, tínhamos o objetivo de voltar a profissionalizar a estrutura militar portuguesa. O equipamento veio durante o final de 75, início de 76, e foi muito importante. Desenvolvi um plano de longo prazo para as Forças Armadas. Começaríamos com o Exército, com a tal brigada, depois assistiríamos a Marinha e, por fim, a Força Aérea. Foi tudo parte de um plano que apresentei aos militares portugueses e que criou um sentimento de unidade com a Europa e um espírito de profissionalismo, levando os militares a acalmarem-se e a regressarem aos quartéis.

Quis reconstruir as Forças Armadas portuguesas a troco de quê?
O objetivo era demonstrar às forças portuguesas que faziam parte da NATO e que tinham um papel, uma missão no seio da Aliança. Porque os militares, e digo-lhe isto como antigo secretário da Defesa, só são bons quando têm uma clara ideia sobre a sua missão. Enquanto parte do complexo militar da NATO, Portugal seria responsável pela defesa do flanco sul. A NATO era uma organização de defesa e Portugal tinha um porto da Aliança. Geograficamente, estava muito próximo do Estreito de Gibraltar, portanto havia uma missão militar clara. O exército português entendeu que invadir as ruas de Lisboa não era consistente com a sua missão. Precisava de se tornar verdadeiramente profissional.

Como qualificaria as Forças Armadas portuguesas da altura?
Caóticas.

O seu plano foi concretizado até que ponto?
Conseguimos os M113 (veículos blindados). Dois anos depois, entregámos uma fragata e, volvidos mais dois anos, já eu não estava em Lisboa, foi a vez da força aérea receber alguns aviões. Foi um plano acolhido favoravelmente por quase toda a gente e para o defender fiz algo pouco normal para um embaixador, testemunhando no Congresso com o objetivo de pedir verba extra, pois o orçamento da embaixada era curto. Nessa altura, tive a ajuda de Edward Brook, do estado do Massachusetts, o primeiro senador afro-americano. Ele puxou os cordelinhos e eu lá consegui os 30 milhões de que precisava para iniciar o plano.

"A complexidade do sistema que me está a explicar vai muito além de qualquer coisa que tenha estudado em ciência política". A frase é de Kissinger em resposta às explicações de Vasco Gonçalves sobre o seu plano político para Portugal. O que era mais complicado para si, lidar com o esquerdismo de Vasco Gonçalves ou com a arrogância de Kissinger?
(Gargalhada). Não me atrevo a fazer essa comparação. Eu e Vasco Gonçalves estávamos habituados a ter longas e tensas discussões, a maioria delas filosóficas. Ele gostava de falar sobre socialismo, marxismo e eu tentava perceber por onde é que ele queria ir.

d.r.

Não é um pouco estranho que ele fosse discutir esses assuntos precisamente com o embaixador americano?
Não me parece que ele escondesse a sua ideologia e a sua simpatia pelo comunismo. Era muito claro que ele simpatizava com as teses comunistas e que provavelmente era comunista.

Você e Kissinger temiam que Vasco Gonçalves fosse uma marioneta nas mãos de um ator mais poderoso?
Não sei se ele era controlado, mas certamente simpatizava com a União Soviética

Torciam o nariz a Vasco Gonçalves, mas confiavam em Mário Soares. Ele era o vosso homem. Porque não outro?
Ele era um líder de grande coragem e integridade. Além disso tinha o maior partido. Os socialistas eram, na minha opinião, a maior esperança para restaurar a democracia em Portugal. A minha perspetiva era de que os três partidos democráticos (PSD, PS e PP) tinham de trabalhar juntos. Esta foi sempre a mensagem que passei aos três. Mas os socialistas eram os mais fortes e tinha a convicção de que venceriam as eleições. O Departamento de Estado tinha uma ideia diferente.

Como assim?
Não sei se tinham um candidato, mas quando lhes enviei um relatório, explicando que os socialistas venceriam, o Departamento de Estado não deu importância.

Estavam convencidos de que os comunistas venceriam?
Penso que sim.

Mário Soares contou-me detalhes do vosso primeiro encontro, dias depois de ter chegado a Lisboa. Ele estava muito preocupado com as manifestações antiamericanas e queria ter a certeza de que você não se sentiria hostilizado. Tinha a ideia de ser mal-amado em Lisboa?
(Risos). Tive alguns incidentes, como uma grande discussão com Otelo Saraiva de Carvalho, depois do golpe de 11 de março, ou seja lá o que aquilo foi, pois ninguém conseguiu perceber bem o que se passou. Otelo foi à televisão e disse que eu devia abandonar o país. Eu telefono-lhe e pergunto-lhe se ele queria mesmo dizer aquilo. Disse-me que sim. Respondi-lhe que ele não tinha autoridade para declarar o embaixador americano persona non grata. Disse-lhe: "Isso é papel do Governo e não teu. O teu papel é proteger o embaixador americano". Ele então perguntou-me onde é que eu vivia. Dei-lhe a morada e ele enviou um pelotão, que ficou quase um ano, pois havia manifestações duas a três vezes por semana em frente à residência.

Sentiu alguma vez que a sua segurança estava em risco?
Não me preocupava com isso. Quando cheguei, logo na primeira noite, houve protestos em frente à embaixada. A páginas tantas, percebi que tinha de ir para casa. Vesti o meu equipamento de ténis, peguei na minha raqueta, meti-me no meu velhinho carro americano, que tinha trazido comigo, e saí a conduzir, acenando às pessoas. Alguns cumprimentaram-me e acabei por seguir viagem (risos).

Isso quer dizer que nunca teve problemas com a população?
Uma vez pararam o meu carro e começaram a apedrejá-lo em pleno Marquês de Pombal. Nada aconteceu de grave. Mas houve muita violência, caso do ataque à embaixada de Espanha.

Já lá vamos a esse ataque. Mário Soares afirmou também que ele e você lutariam até ao fim. Até onde estavam dispostos a ir?
Soares era muito determinado e corajoso. Certamente estaria disposto a ir para a rua e confrontar as forças comunistas. Ele percebia o comunismo melhor do que a maioria, devido à sua estada em França, e tomou uma posição muito forte.

Que tipo de apoio forneceu a Soares e aos socialistas?
Quando ele foi eleito primeiro-ministro aprovámos um grande empréstimo.

E antes disso, no período após a revolução?
Não vou detalhar, mas fornecemos bastante apoio moral. A maior parte do apoio financeiro veio do SPD alemão. Os Estados Unidos apoiaram, mas...

Apoiaram financeiramente ou não?
Não quero ir por aí, prefiro referir-me ao grande empréstimo.

Mas não desmente que, durante 1975, prestou apoio moral e financeiro a Mário Soares?
Não nego, mas não quero entrar por aí.

Soares também me disse que Kissinger e Ford estiveram em Espanha a tentar convencer Franco a intervir em Portugal para acabar com a aventura comunista. Confirma? Soares disse-lhe isso?
Sim. Não duvido de que o Mário tenha dito isso e, se o disse, certamente, está correto. Mas eu nunca ouvi falar disso.

Essa pressão significa que Kissinger se deixou cegar pela ideia de que os comunistas assumiriam o poder em Portugal?
Sempre tentei contrariar essa ideia e falei com o embaixador espanhol que concordou comigo. Espanha devia ser o último país a intervir em Portugal. Seria desastroso. Enviei várias mensagens ao meu Governo de que não devíamos tentar envolver Espanha, mas não sei se Henry Kissinger prestou alguma atenção ao que lhe disse.

É interessante, porque durante o ataque à embaixada de Espanha as pessoas temeram essa intervenção. Como assistiu a esse episódio, sabendo que Kissinger estava a tentar convencer Franco a intervir?
Eu não sabia que Kissinger estava a tentar convencer Franco. O que sabia era que eu insistia com o Departamento de Estado para que não formasse nenhum tipo de aliança com Espanha. Seria um erro. Da mesma forma que argumentava contra a independência dos Açores.

Considera que o ataque foi um dos momentos mais tensos da crise?
Não sei se foi o mais tenso, houve tantos...

Otelo continua a suspeitar de que foi você que arquitetou o ataque.
Não presto atenção a acusações disparatadas. São acusações frívolas e não tenho tempo para elas.

Ainda sobre o ataque à embaixada: na altura, parece que havia um jornalista que apelava às pessoas para afluírem ao local. Era Artur Albarran, que mais tarde seria seu parceiro de negócios em Portugal. Eles ainda existem?
Não. Terminaram há sete, oito anos.

Porquê?
É uma longa história, mas essencialmente tudo acabou porque ele (Albarran) não tinha um projeto. Sentimos muitas dificuldades com o senhor Albarran. Não era a pessoa certa para se ter uma relação de trabalho.

O chamado plano B, o apoio à independência dos Açores em caso de vitória comunista em Portugal, esteve pronto a ser acionado?
Alguns senadores, como o republicano Jesse Helms, forçaram essa ideia, mas eu fui até Washington e pressionei todos aqueles com quem me encontrei, como por exemplo Bill Colby, o diretor da CIA na altura, e Henry Kissinger. Garanti, a todos, que o apoio à independência dos Açores seria desastroso. A minha visão sobre esse assunto acabou por prevalecer.

Desastroso porquê?
Porque reforçaria a esquerda radical em Portugal e o antiamericanismo. Seria um presente para o Partido Comunista.

Acerca de António de Spínola e Costa Gomes (primeiro e segundo Presidentes pós-revolução), e tendo em conta que tiveram papéis diferentes no desenrolar dos acontecimentos, que opinião tem deles?
Nunca conheci Spínola na minha vida. Sei que os jornais falam dos meus encontros com Spínola, mas não sei onde foram buscar essa informação. Nunca me encontrei com ele.

Mas quando você chegou a Portugal, Spínola ainda era uma figura de destaque. Como foi possível não ter nenhuma ideia sobre ele?
O que sei dele é que favorecia os grupos mais conservadores, que alguns classificariam de direita.

Considera que ele foi uma figura desestabilizadora?
Não faço ideia. Você quer que eu faça o julgamento de alguém que nunca conheci.

Tendo em conta que ele é acusado de ter preparado o ataque de 11 de março, garante que o embaixador dos EUA não sabia nada sobre o assunto?
Não sei de nada até hoje.

Costa Gomes?
Era mais associado à esquerda e por isso acho que tinham filosofias diferentes.

Durante o seu período em Lisboa e o seu braço de ferro com Kissinger, que considerava Portugal um caso perdido para os comunistas, teve de recorrer aos seus amigos em Washington para fazer valer as suas posições. Quem foi o seu maior aliado?
O Donald Rumsfeld. Ele era o chief of staff da Casa Branca e é um velho amigo. Expliquei-lhe, na altura, que estava preocupado. Ele não disse nada, simplesmente incentivou-me a continuar com o meu trabalho. No entanto, tenho razões para acreditar que ele tomou algumas decisões.

Como por exemplo?
Ele pôs-me na agenda do Presidente e marcou-me uma entrevista com ele. Isso ajudou muito na minha discussão com Kissinger.

Quer dizer que pressionou Kissinger?
(Pausa) O que posso dizer é que, após a intervenção do Don, reuni-me com Kissinger e ele passou a ser adepto da minha teoria.

Defendia que o apoio a Portugal teria também o objetivo de, a médio prazo, atribuir ao país um papel mais relevante no seio da NATO. É verdade que os EUA, quando se apercebem da importância estratégica de Portugal, exigiram à União Soviética que terminasse o apoio ao PCP?
Não sei, mas Portugal era uma peça importante no puzzle da altura, com uma influência desproporcional ao seu tamanho, devido à participação na NATO e à posição geográfica na Europa. Acredito que se os comunistas têm sido mais inteligentes e a sua liderança um pouco semelhante à de Enrico Berlinguer, líder do PC italiano, eles teriam conquistado o poder. Não penso que as táticas de Álvaro Cunhal tivessem o apoio do povo. Ele era demasiado estalinista e 'pouco português'. Tinha estado muito tempo exilado. Se têm adotado uma posição mais moderada, teria sido mais difícil lidar com eles.

Até personalidades da direita portuguesa elogiam Cunhal. Você não. Porquê?
Ponho as coisas desta forma: se eu tivesse sido líder do PC, teria adotado uma estratégia diferente. Um comunismo soft. O povo português é muito conservador e não queria uma mudança revolucionária, mas apenas liberdade e ver-se livre da ditadura.

Ria-se sempre que ouvia frases como: "Portugal será a Cuba da Europa"?
Sim. Isso era quase uma anedota.

Parecia ter um retrato sociológico de Portugal mais apurado do que alguns dos líderes políticos nascidos no país, que, na sua opinião, procuraram importar modelos que chocavam com a natureza dos portugueses.
É verdade. Passei muito tempo a estudar o povo português.

Quantas vezes esteve em Portugal antes de ser nomeado embaixador?
Zero.

Nem sequer em outubro de 74, onde parece que se reuniu com Vítor Alves?
Não. A primeira vez que pisei solo português foi para ser embaixador americano.

É impressionante que soubesse tanto sobre o país sem nunca ter lá estado.
Eu estudei. Li tudo o que pude.

Quais foram as suas fontes de informação sobre o país?
O Walters (Vernon Walters, vice-diretor da CIA entre 1972 e 1976) passou por Portugal. Éramos muito amigos e aprendi bastante com ele.

Qual foi o melhor conselho que lhe deram antes de ir para Portugal?
O diplomata Larry Eagleburger deu-me o melhor de todos: "Vais para a pior embaixada do mundo. Prepara-te".

Porquê?
Não era considerada uma embaixada bem gerida. O Departamento de Estado desconfiava da informação que provinha de Lisboa.

Era mal gerida até que ponto?
Digamos que, quando cheguei, fiz muitas mudanças.

Tais como?
Um novo Deputy Chief of Mission, uma espécie de número dois. Trouxe também alterações ao nível da secção política e livrei-me de uma pessoa.

E reforçou a presença da CIA.
Não alterei o número de elementos. A única coisa que tornei muito claro é que era eu quem mandava e que a CIA, tal como o resto do pessoal, teria de prestar contas.

Posso interpretar das suas palavras que os funcionários da CIA, tal como o resto do pessoal da embaixada, faziam o que queriam em Portugal antes da sua chegada?
Vamos apenas dizer que eu tinha um estilo de gestão muito próprio. E, tendo em conta que depois da embaixada passei por vários ministérios, tenho a ideia de que esse estilo de gestão foi reconhecido.

Depois de Portugal, seguiu uma carreira meteórica. Como acompanhou os desenvolvimentos nacionais?
Penso que fiz uma visita a Portugal, enquanto secretário da Defesa, em 1988. Mas, entretanto, encontrei-me com várias pessoas, Ramalho Eanes, Pinto Balsemão... Com este último, encontrámo-nos em Washington. Um tipo articulado, hábil. Tínhamos as nossas divergências sobre os Açores.

Que divergências foram essas?
Não me lembro bem, mas tinham a ver com as negociações sobre um novo acordo para as Lajes. Ele estava interessado num preço mais alto.

E conseguiu o que pretendia?
Bom, ambos ficámos satisfeitos com o acordo final. Ele é um homem inteligente.

Já o conhecia dos tempos de embaixador em Lisboa?
Sim. Foi das pessoas que quis conhecer.

Parece impressionado. Pensa que ele devia ter assumido a liderança do PSD mais cedo?
Teria sido um líder mais flexível do que Sá Carneiro.

Como assim?
Sá Carneiro acusou-me de várias coisas.

De quê?
Por exemplo, ficou muito chateado quando o Walter Mondale (antigo vice-presidente americano) se deslocou a Portugal e não teve direito a um encontro a sós com ele. Sá Carneiro culpou-me disso, mas eu expliquei que Mondale tinha dito que não queria encontrar-se com nenhum líder partidário, apenas com a oposição como um todo. Ele julgou que eu o tinha 'cortado' da agenda e que tudo aquilo tinha sido um ataque pessoal.

Mondale reuniu-se com Soares.
Mas Soares era primeiro-ministro.

Ciúmes?
Sim. O Sá Carneiro achava que tinha o direito natural a uma reunião à porta fechada com Mondale e o Mondale não queria.

Em 1977, numa comissão do Congresso americano, disse que Portugal era um caso único na História mundial, depois de ter sobrevivido a décadas de ditadura e evitado um novo totalitarismo, desta vez de esquerda. Ainda pensa assim?
Portugal é uma história maravilhosa! Um país longe do seu império que depôs um regime fascista, que esteve à beira de nova ditadura, reagiu e instalou uma democracia que funciona. Tornou-se um exemplo, um modelo. Atrevo-me a dizer que Espanha não teria enveredado pela democracia se Portugal não o tivesse feito primeiro. E isso contagiou a América do Sul.

É curioso ver que o tal efeito dominó aconteceu, mas ao contrário do que Kissinger tinha previsto - a tomada de Portugal pelos comunistas iria contaminar o resto do sul da Europa, principalmente Espanha e Itália.
Absolutamente. Aconteceu o contrário do que Kissinger previu.

Pensa que o país ainda está a pagar a fatura de tantos anos de ditadura?
Nada neste mundo é fácil. Portugal enfrentou uma experiência traumática, mas, no final, conquistou um grau diferente de maturidade. Ninguém hoje fala de um Portugal instável do ponto de vista político. Fala-se de novas eleições. O processo democrático está consolidado e isso é uma enorme história de sucesso.

Atribui essa maturidade democrática a quê e a quem?
À natureza do povo português, que é conservador, bastante inteligente e comprometido com a democracia.

Fala de democracia, mas em 2011, quando esteve pela última vez em Portugal, perguntaram-lhe sobre a crise económica e você disse que as crises vão e voltam, o que interessa é a defesa da democracia. Mas afirmou, também, que havia o risco de os problemas económicos tomarem conta do país. Essa possibilidade preocupa-o?
Não me parece que isso venha a acontecer. O que Portugal está a atravessar é um processo muito difícil, mas as instituições democráticas não se vão esboroar por causa disso. Os portugueses gostam de liberdade e eles não vão desistir facilmente, pois sabem o que é viver numa ditadura.

Acredita que os portugueses irão continuar pacientes?
O canal de escape da insatisfação será as eleições. Os portugueses são sempre um pouco fatalistas. Acho, no entanto, que quando lá estive, há dois anos, estavam mais fatalistas do que é normal.

Pessimismo ou realismo?
Ambos. Factos reais combinados com a tendência de olhar sempre para o lado pior da coisa.

Que opinião tem sobre o modelo de austeridade? Considera que os credores, como aqui o FMI, deviam aligeirar os pagamentos?
Bom, eu não sou um guru do FMI e não posso dizer quanta austeridade é precisa, mas sei que quando Mário Soares era primeiro-ministro, e nós colocámos em prática uma série de empréstimos do FMI, eles insistiam em austeridade. A dada altura tomei a posição de enough is enough, não podíamos impor demasiada austeridade numa democracia tão frágil.

Ainda acredita que demasiada austeridade pode afetar a democracia portuguesa?
Há um ponto em que a partir do qual o povo reage, mas estamos longe disso.

Cometeu algum erro em relação a Portugal?
(Longo silêncio) Não. Sinceramente, não. Olhe, se calhar devia ter praticado mais o meu ténis (risos).