A 17 de maio de 2011, Portugal assinou o memorando com a Comissão Europeia, o BCE e o FMI que levou à entrada da troika no país. A partir daí foram três anos de cortes e ajustes e revolta social. As greves e as manifestações sucederam-se: houve 424 greves até à saída das instituições internacionais, segundo dados da Pordata. Contudo, esta quase meia centena de paralisações continua a ser um resultado tímido quando comparado com o de outros países. Nos 12 mais grevistas da Europa, Portugal aparece em antepenúltimo lugar. Entre o bom aluno português e a cumpridora Alemanha está Malta. Se, por um lado, normalmente se associa a intensificação das greves aos períodos de austeridade, é curioso ver que durante o segundo ano do Governo de José Sócrates houve 155 greves, mais do que em qualquer ano de visita da troika.
Num mundo democrático que se habituou a ser reivindicativo e a lutar pelos direitos, os braços de ferro entre patrões e empregados vão-se sucedendo. O velho continente foi acordando para a necessidade de parar de trabalhar em tempos diferentes. Em França, cedo se começou a gritar liberdade, fraternidade e igualdade, e também foi precoce o movimento grevista, e por isso, hoje, França “tem processos muito mais politizados do ponto de vista grevista do que Portugal”, explica Adriano Campos, sociólogo do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, quando compara os elevados números grevistas franceses com os portugueses. Só entre 2000 e 2010 houve dez greves gerais em França, quase o mesmo número que Portugal teve durante todo o período democrático.
Em 1864, em França ainda não era sequer legal os trabalhadores unirem-se em sindicatos, mas as greves já eram conhecidas. Em Portugal foram precisos muitos mais anos para que essa prática se tornasse aceitável, não só do ponto de vista legal como também do ponto de vista social. Em 1948, em plena ditadura em Portugal, os mineiros do Chipre faziam uma das mais emblemáticas paralisações da História. Por cá, os sindicatos e as greves foram um dos frutos do 25 de Abril, mas há um estudo que diz que a semente foi plantada muito antes. Uma análise do sociólogo José Tengarrinha, “As Greves em Portugal: Uma Perspetiva Histórica do Século XVIII a 1920”, deparou-se com documentos que fazem “uma primeira alusão a greves em 1901, sendo a primeira estatística, muito incompleta, referente a 1903”
Adriano Campos reconhece o “pico grevista a seguir ao 25 de Abril, que não teve paralelo” e que, lembra, começou a diminuir durante a década de 80. “Sobretudo quando se entra no novo paradigma dos vínculos atípicos: contratos a prazo, trabalho temporário, contratos a termo.” Dora Fonseca, psicóloga e doutoranda em Sociologia também no Centro de Estudos Sociais, foca-se nos “contextos extremamente duros em que se fazem as greves”. E lembra que há sectores que estão “desprotegidos” e que têm “dificuldades acrescidas” em montar as paralisações. Os discursos cruzam-se, e a investigadora também aponta a falta de contratos e as “represálias que podem surgir nesses locais de trabalho a nível de funcionamento interno”.
Sob a batuta dos sindicatos
Se para os países os resultados de uma greve se contam, quase sempre, em dias perdidos, para os grevistas podem, mais tarde, contar-se em dias ganhos. Mesmo que isso signifique perder alguns dias de salário. O ano de 2015 foi, em Portugal, aquele que teve menos greves (75), mas ainda assim o país ficou a perder 20 dias de trabalho por cada mil trabalhadores. E é muitas vezes aqui que os sindicatos podem fazer a diferença. Se se pegar no caso francês, percebe-se que, embora haja muitos sindicatos, as taxas de adesão aos movimentos sindicais são baixas (8%), por oposição ao número de grevistas. Naquele país, dados do European Trade Union Institute mostram que, entre 2009 e 2013, por cada mil trabalhadores houve 171 dias em que não se trabalhou.
Dora Fonseca justifica isto com a “forte tradição grevista” e com “um processo que tem instituído os fundos de greve, pelo que não sofrem penalizações pecuniárias como outros países”, como Portugal. Adriano Campos reconhece “as baixas taxas de sindicalização”, que são o resultado não só das condições precárias como também da “abordagem dos sindicatos”. O investigador foca-se nos dois principais — CGTP e UGT. Têm ambos, de acordo com o investigador, ligações políticas, um ao Partido Comunista e outro ao Partido Socialista, e por isso muitas vezes faz-se “um sindicalismo que se tornou refém das agendas partidárias e, na verdade, nunca soube fortalecer e percecionar aquilo que era a transformação do mundo do trabalho”. E explica: “A nova vaga de trabalhadores precários está muito mais presente no sector terciário da economia e, portanto, isso traduz-se num mundo bastante distinto daquilo que era o Portugal mais virado para a indústria e para agricultura há 40 anos.”
Em Portugal, a lei é a mesma para as greves no sector público e no privado, embora os sindicatos tenham mais poder no primeiro. Há países onde as regras são diferentes. Na Suíça e na Polónia, por exemplo, as greves são permitidas e estão previstas na lei para o sector privado, mas são proibidas no público. Em Portugal, o poder e a dimensão dos sindicatos é maior no sector público, e por isso, para os dois investigadores ouvidos pelo Expresso, é impossível olhar para a última greve da PT (os trabalhadores recusavam ser transferidos para outras empresas do Grupo Altice) e não ver nela uma vitória grevista. Sendo uma empresa privada, há dez anos que não convocava uma greve conjunta com os sindicatos e a comissão de trabalhadores.
Ambos os investigadores pormenorizam o tipo de greves e lembram que em Portugal há greves e negociações diferentes, e para isso basta que sejam feitas em terreno urbano ou não. O sociólogo Adriano Campos lembra ainda que há muitas médias e pequenas empresas, por vezes familiares, onde a questão da greve nem se coloca. Os dois fazem ainda questão de repetir que há sectores onde os trabalhadores temem represálias. Contudo, em Portugal, as greves sectoriais sempre foram mais escolhidas do que as gerais, ressalvam.
Clímax grevista
Dora Fonseca acredita que fazer greve é muitas vezes o ato de premir o gatilho depois de se ter tido a arma em riste durante muito tempo. “A greve como recurso extremo de luta não pode ser usada de qualquer maneira. A greve não se pode tornar uma arma rotineira, porque pode perder a sua força política.” Mas premir o gatilho demasiadas vezes pode ser contraproducente. “É para usar com peso e medida. Se a banalizarmos demasiado, a greve perde a sua eficácia perante o poder político e económico. Comparativamente à Grécia tivemos menos greves, é certo. Mas também não foi pelo número exagerado de greves na Grécia que a situação melhorou.” Contudo, ressalva, “a situação deles comparativamente à nossa era muito mais desesperante”. No país do sul da Europa que mais luta deu à austeridade entre 2010 e 2014 houve 14 greves gerais, segundo dados do European Union Trade Institute.
Os gregos não tiveram sorte nas paralisações que fizeram, mas os dois investigadores enumeram exemplos onde as intenções grevistas foram acolhidas. Adriano Campos, por exemplo, lembrou o caso da Efacec (2015), onde, depois das greves, os trabalhadores conseguiram aumentos salariais entre 25 e 55 euros. E Dora Fonseca recordou a rara greve dos colaboradores do call center da Manpower (2017) que, mais do que tudo, trouxe à discussão a precariedade deste sector. A psicóloga vê aqui a maior arma da reivindicação grevista: “Leva a muitas negociações.” “Aliás, os pré-avisos de greve são quase como espicaçar o poder para se sentar à mesa das negociações.” E recorda o caso da greve feita pelos médicos, cujo primeiro pré-aviso abriu logo a porta das negociações, embora não tenha chegado a nenhum consenso nessa fase.
Mas a investigadora explica que às vezes “o facto de convocar a greve pode levar a uma negociação, porque aí o poder político e os empregadores são pressionados. Não quer dizer que cheguem sempre a acordo, mas muitas vezes serve como pressão política, mas também como pressão da opinião pública”. Mantendo esta linha de discurso, alerta que “a greve, dentro da legalidade, é o instrumento limite”. “Só se usa quando a concertação social falha, a negociação coletiva falha, quando todos estes mecanismos de negociação e regulação falham.”
Desta escalada negocial, dos sucessos e insucessos, chegamos à greve da Autoeuropa, marcada para 30 de agosto. É o exemplo de uma grande empresa que contribui para uma fatia do PIB e cuja comissão de trabalhadores, até à data influente, se demitiu depois de não ter chegado a acordo com a entidade patronal. Adriano Campos chama-lhe o caso “paradigmático” de uma empresa grande que, mesmo com uma comissão de trabalhadores “muito forte que sempre conseguiu alcançar bons acordos, nunca deixou de fazer as greves gerais”.
O objetivo da greve é gerar mudança: desde logo para quem trabalha, mas também para todos os outros. Segundo o historiador francês Stéphane Sirot, os franceses são solidários com as greves, por acreditarem ser um mal necessário. Em Portugal, os dois investigadores também acreditam que os portugueses partilham esta teoria, embora não haja dados para o provar. Dora Fonseca lembra que “é normal que as greves causem alguma atribulação na vida da população”. “Há quem entenda isso e há quem se sinta atingido na sua vida quotidiana, na sua esfera privada. Mas, de forma geral, há um certo bom senso, até porque temos uma cultura democrática em Portugal em que as pessoas entendem que a greve é um direito.”