Que voz é esta?

“Nós tendemos a desvalorizar a opinião das crianças, mas ser mãe de um 'trans' ensinou-me que temos sempre de ouvi-los com muita atenção”

Nos últimos anos tem vindo a crescer o número de crianças e jovens que não se reconhecem no sexo com que nasceram. No novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?” falamos sobre as razões deste aumento, dos fatores que contribuem para a formação da identidade de género e de como respeitar o desejo destes menores, que estão muitas vezes em grande sofrimento, garantindo ao mesmo tempo que não há decisões precipitadas. Ouça as explicações da pedopsiquiatra Ana Teresa Prata e o testemunho de Alexandra Teixeira, mãe de um jovem trans de 23 anos, que iniciou tratamentos hormonais no dia em que fez 16

Alexandra Teixeira não ligou quando, aos 4 ou 5 anos, a filha disse, pela primeira vez, que queria ser um menino. Pensou que fosse “uma coisa passageira”, mas o desejo não esmoreceu com o tempo. “A insistência mantinha-se. Queria ser rapaz, usar só roupa de rapaz e ter o cabelo curto”. Ainda assim, não valorizou. Mas um dia, quando chegou a casa, encontrou a criança, então com 10 anos, num “pranto convulsivo”. “Mãe, eu não aguento mais. Choro todas as noites porque quero ser um rapaz”, suplicou-lhe.

Naquele momento, e perante tão profundo sofrimento, Alexandra percebeu que tinha de fazer alguma coisa. “Disse-lhe: ‘tu vais ser um menino, não vais é ser já.’ Depois percebi que, de alguma maneira, ele já era um menino, mas ninguém o via assim”, recorda, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.

Alexandra Teixeira é mãe de um jovem trans de 23 anos e vice-presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Liberdade de Género (AMPLOS)
TOMAS ALMEIDA

A família procurou rapidamente o apoio de um especialista, que confirmou tratar-se de um caso de identidade trans, ou seja de alguém cuja identidade de género não coincide com o sexo de nascença.

Os conceitos de sexo e género são frequentemente confundidos, embora sejam totalmente distintos. “Quando falamos de sexo, falamos de questões biológicas, cromossómicas” e hormonais que envolvem os órgãos genitais e reprodutivos; já a identidade de género refere-se a um sentimento de pertença às características habitualmente associadas ao masculino e feminino, esclarece a pedopsiquiatra Ana Teresa Prata.

A ciência ainda não desvendou exatamente como se forma a identidade de género, mas já se sabe que há fatores biológicos que desempenham um papel importante nesta construção. “Aquilo que se entende atualmente é que, provavelmente, serão as hormonas sexuais no cérebro do feto que acabam por determinar a identidade de género da pessoa”, ainda durante a gravidez, adianta a pedopsiquiatra.

Daí que seja comum as primeiras manifestações de identidade trans surgirem ainda na infância, em idades muito precoces. "Aos 3, 4 anos, as crianças já conseguem perceber o que é masculino, o que é feminino e dizer se são rapazes, se são raparigas. Logo por essa idade já têm uma noção desta diferença e da sua própria identidade”, explica Ana Teresa Prata.

A pedopsiquiatra Ana Teresa Prata tem-se dedicado desde 2018 ao acompanhamento de crianças e jovens com diversidade de género
TOMAS ALMEIDA

A especialista, que desde 2018 se dedica ao acompanhamento de crianças e jovens com diversidade de género, sublinha que a identidade trans não é uma doença, mas apenas uma “expressão da diversidade da sexualidade humana”. “A identidade é da pessoa, não dá para mudar e não precisa de ser tratada”, sublinha.

No entanto, algumas pessoas trans podem desenvolver um sofrimento psicológico muito intenso, por se sentirem “aprisionados” num corpo que não reconhecem como seu. Nesses casos, trata-se de uma disforia de género, condição associada a níveis elevados de ansiedade, depressão e risco de suicídio, que precisa de ser tratada.

Quando iniciar tratamentos: urgência vs ponderação

Muitos jovens em sofrimento sentem uma grande urgência em iniciar tratamentos - hormonais e/ou cirúrgicos - para adequar o corpo à sua identidade, mas é preciso ponderação para garantir que não se avança precipitadamente para intervenções que podem ser irreversíveis. Saber qual é a idade mínima para estes procedimentos é uma questão que tem levantado grande controvérsia, mesmo dentro da comunidade médica.

“Antes da puberdade, não há necessidade nenhuma de fazer qualquer tipo de tratamento. Estamos a falar da identidade da pessoa, da criança, que está a crescer e a descobrir-se”, defende a especialista, que integrou o grupo de trabalho do Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos responsável pelas recomendações sobre abordagem da diversidade de género em crianças e adolescentes.

Para Ana Teresa Prata, a urgência dos jovens em fazer tratamentos não tem só a ver com o desconforto face ao seu corpo, mas também, muitas vezes, com o facto de não serem reconhecidos pelos outros relativamente à sua identidade de género.

“Se ajudarmos o jovem a sentir-se reconhecido na sua identidade, independentemente das intervenções que faça, isso vai ajudá-lo bastante a lidar com a espera. E isso passa pelo nome [ou seja, por chamar pelo nome que a pessoa que a pessoa quiser adotar] e por usar os pronomes corretos, nas escolas, em casa, no consultório”, diz. E o apoio da família é fundamental, constituindo mesmo o maior fator protetor em termos de doença mental.

Alexandra Teixeira e o marido apoiaram o filho, incondicionalmente, em todas as etapas do seu processo de transição. No dia em que fez 16 anos, o jovem iniciou os tratamentos hormonais, levando a sua primeira injeção de testosterona. Aos 17, mudou de género e de nome em todos os documentos oficiais, tornando-se numa das primeiras pessoas a fazê-lo em Portugal antes de atingir a maioridade. E pouco depois submeteu-se a uma mastectomia.

“Foi um momento de grande alívio. Antes ele ia para a praia com uma t-shirt largueirona e com aquelas camisolas de bodyboard para ir à água e depois passou a poder ir apenas de tronco nu. E isso fez toda a diferença. Ele percebe que os outros estão a vê-lo como ele é”, conta a mãe, atualmente vice-presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Liberdade de Género (AMPLOS).

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.