Que voz é esta?

“Há pessoas que saltam de consulta em consulta para pedir ansiolíticos, que causam muita dependência e são muito difíceis de descontinuar”

Portugal é o segundo país da OCDE com maior utilização de antidepressivos. No caso dos ansiolíticos, é mesmo o primeiro. O que justifica isto? E, tratando-se de uma realidade já com tantos anos, o que explica que nunca tenha sido devidamente analisada e objeto de uma reflexão mais profunda? Num novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado à saúde mental, oiça as explicações e propostas de medidas apresentadas por Luís Câmara Pestana, chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, e de Susana Almeida, responsável pelo serviço de psiquiatria do IPO do Porto e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Susana Almeida, responsável pelo serviço de psiquiatria do IPO do Porto, e Luís Câmara Pestana, especialista em Psiquiatria e Farmacologia, e chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa
José Fernandes

Portugal é, há pelo menos 20 anos, o país da OCDE onde se utilizam mais ansiolíticos, como os conhecidos Xanax e Valium, e a diferença em relação aos outros países é muito significativa. Em 2020, por exemplo, o consumo deste tipo de psicofármacos foi 45% superior ao do país que ocupou a segunda posição, Espanha. O que explica que sejam utilizados mais ansiolíticos em Portugal do que nos restantes países?

Em entrevista ao podcast “Que voz é esta?”, num episódio dedicado aos psicofármacos, Susana Almeida, responsável pelo serviço de psiquiatria do IPO do Porto e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, explica que persiste em Portugal uma "cultura de partilha" destes medicamentos entre familiares, amigos e vizinhos, que os tomam sem consultarem profissionais de saúde e sem uma prescrição médica.

Refere também que "os médicos das várias especialidades prescrevem ansiolíticos, seja como relaxantes musculares, seja para o alívio transitório de sintomas de ansiedade". Como se trata de medicamentos muito eficazes nessas circunstâncias, é "tentador" continuar a tomá-los durante algum tempo, quando o período de toma não deve exceder os 15 dias, devido ao potencial de adição destes fármacos. "Temos pessoas na consulta que os tomam há decadas. São medicamentos que, rapidamente, causam tolerância e deixam de fazer efeito, levando a que haja a tentação de aumentar a dose."

“Pessoas que estejam a tomar ansiolíticos há mais de seis meses podem precisar de vários meses, às vezes anos, para os largar, porque se tornam dependentes. Interromper a toma de um dia para o outro pode trazer sintomas físicos muito complicados, como delírios, alucinações, quedas e outros comportamentos anómalos. Se as pessoas soubessem que a interrupção, seja por que motivo for, está associada a todos estes riscos, talvez ponderassem se vale a pena começar a tomar este tipo de fármacos."

Deixar de tomar estes fármacos ou substituí-los por outros que causem menos dependência é um processo difícil e moroso. “Pessoas que estejam a tomar há mais de seis meses podem precisar de vários meses, às vezes anos, para os largar.” Interromper a toma de um dia para o outro, acrescenta "pode trazer sintomas físicos muito complicados", como "delírios, alucinações, quedas e outros comportamentos anómalos". “As pessoas passam mal e há muitos riscos. Se soubessem que a interrupção, seja por que motivo for, está associada a todos estes riscos, talvez ponderassem se vale a pena começar a tomar estes fármacos", aponta a psiquiatra, que integra a direção do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Sociedade Portuguesa de Psiquiatra e Saúde Mental.

A elevada utilização dos ansiolíticos em Portugal também estará relacionada com a falta de intervenções psicoterapêuticas no SNS. "A psicoterapia é uma ferramenta de que nem sempre dispomos, ao contrário do que sucede noutros países. É esse o tratamento que está indicado para as perturbações ligeiras e moderadas, quer de ansiedade, quer depressivas." A utilização “mais liberal” de alguns fármacos pode, assim, "significar que não estamos a disponibilizar às pessoas o tratamento ideal."

José Fernandes

Igualmente convidado a participar no episódio, Luís Câmara Pestana, especialista em Psiquiatria e Farmacologia, chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, acrescenta outra explicação. "Há um problema relativamente às farmácias. A pessoa apresenta uma prescrição antiga, dizendo que não teve oportunidade de ir a uma consulta, e a farmácia acaba por facilitar a cedência do medicamento. É pedido ao doente que volte à farmácia para apresentar a receita, mas ele tanto pode voltar como não." Além disso, “há pessoas que saltam de consulta médica em consulta médica, alegando que se trata da primeira consulta, para pedir prescrições de ansiolíticos, quando já se encontram num estado de dependência."

Ambos os especialistas concordam que são necessárias medidas face aos números do consumo destes fármacos em Portugal. Entre as várias soluções que defendem, destaca-se a contratação de psicólogos para os centros de saúde e hospitais, não só para lidar com as situações de "dependência e adição", mas para implementar estratégias a nível psicológico, diz Luís Câmara Pestana.

Por outro lado, também é importante que os próprios pacientes percebam que é normal ter períodos de maior ansiedade e que essa ansiedade “não tem de ser medicalizada”, diz Susana Almeida. Deve, sim, ser resolvida com outro tipo de estratégias e intervenções psicoterapêuticas. “Muitas vezes, queremos que o sofrimento psicológico e mal-estar sejam rapidamente aliviados e não estamos disponíveis para nos entregarmos a um processo que vai demorar mais tempo. Mas, na realidade, é esse processo que vai trazer benefícios a médio e longo prazo."

"Há um problema relativamente às farmácias. A pessoa apresenta uma prescrição antiga, dizendo que não teve oportunidade de ir a uma consulta, e a farmácia acaba por facilitar a cedência do medicamento. É pedido ao doente que volte à farmácia para apresentar a receita, mas ele tanto pode voltar como não."

Neste décimo episódio do podcast do Expresso sobre saúde mental, foram abordados ainda outros temas: a eficácia ou não dos antidepressivos, o aumento da utilização deste tipo de psicofármacos em Portugal - que foi o quarto país da OCDE onde este consumo mais aumentou nos últimos 20 anos, tendo triplicado entre 2000 e 2020 - e a alegada perda de interesse da indústria farmacêutica nestes medicamentos nas últimas décadas.

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.