Os grandes acontecimentos dos nossos dias são contados por jornalistas. Com microfones, câmaras fotográficas ou de filmar, lápis e bloco de notas, os jornalistas procuram captar aquilo que vêem, aquilo que ouvem e aquilo que descobrem por entre o emaranhado de factos e contrafactos que se multiplicam nos ambientes em que a verdade se torna uma arma. Escrevem, filmam, fotografam e relatam para depois os ouvintes, telespectadores ou leitores tirarem as suas próprias conclusões.Para que seja mais fácil para todos percebermos o mundo em que vivemos.
Gosto muito do jornalismo, dou muito valor aos meus colegas e ao trabalho que fazem. Ainda por cima numa altura em que ser jornalista é difícil, dadas as precárias condições de trabalho que assolam as redações portuguesas. Por isso, não podia fechar um podcast sobre a guerra na Ucrânia, por onde passaram tantos jornalistas portugueses, sem dar voz a alguns dos colegas que comigo foram apanhados pelo início da grande guerra em Kyiv.
A 24 de fevereiro de 2022, o Rui do Ó, repórter de imagem da SIC, a Cândida Pinto, jornalista da RTP, e o Pedro Mourinho, na altura pela CNN Portugal, estavam em Kyiv, na Ucrânia. O Rui a trabalhar em parelha comigo (a quem, por motivos que podem descobrir no episódio, chamei Jorge o tempo todo em que estivemos na Ucrânia), mas sabíamos que bastava um telefonema para os colegas dos outros meios de comunicação social para nos ajudarem com o que quer que fosse (e vice-versa).
Neste episódio, composto por três chamadas telefónicas, quis saber o que tinha marcado os meus colegas naqueles primeiros dias, porque, como disse o Pedro, “Apesar de sermos jornalistas e de já termos visto muito nas nossas vidas, nunca estamos preparados para o inesperado. Fomo-nos deparando com uma série de testemunhos para os quais não se estuda nas escolas, não se aprendem no jornalismo teórico”.
Momentos que tiram o fôlego ou que arrepiam, como aquele relatado pela Cândida Pinto no bunker onde estávamos: “Crianças muito pequenas, com menos de dois anos, acordadas, quietas e caladas. Contagiadas pelo receio que contaminava todas as pessoas que ali estavam, sem saber o que ia ser o dia seguinte. Estavam ali, de olhos abertos, quietas e caladas”.
“É inevitável lembrarmo-nos dos rostos daqueles que se cruzaram connosco,” disse-me o Rui, recordando algumas das pessoas que conhecemos ou que simplesmente nos habituámos a ver todos os dias, como uma jovem rapariga que tocava violino à porta do nosso hotel. “É uma coisa que me lembro sempre, de estar no quarto de hotel e, de repente, começar a ouvi-la tocar. E depois, quando a guerra começou, desapareceu tudo. Lembro-me de pensar: o que terá sido feito daquela miúda? Para onde é que ela foi? Será que conseguiu fugir? O que é que ela foi fazer? Não consegues deixar de pensar sobre o que terá sido feito daquelas pessoas.”
Ou o Pedro, que acompanhou uma carrinha com voluntários ucranianos que apanhavam cadáveres numa estrada entre Bucha e Irpin. “Essa foi a história que estava menos preparado para fazer, é muito avassaladora”, confessa. Mas há outras, inúmeras histórias como “o último florista a trabalhar em Kyiv, na praça Maidan. Ou um senhor que ficou uma manhã inteira na rua com duas bandeiras, com as sirenes a tocar. Cada história é diferente e cada uma parece ser mais forte que a anterior”.
Como sublinha a Cândida, “Não há nada que substitua o jornalista no local onde as coisas estão a acontecer” porque “vivemos num mundo onde há uma grande quantidade de desinformação que, de certo modo, tapa o conteúdo que interessa e a verdadeira realidade”. O jornalista poder ir aos sítios, estar nos locais e testemunhar os acontecimentos pelos próprios olhos, “é fundamental para o jornalismo e para democracia”. Uma das armas da guerra é a propaganda por isso ao jornalista cabe, por vezes, “dar luz sobre coisas que podem estar mergulhadas em informação que não é verdadeira”.
“O único património do jornalista é a credibilidade”, nas palavras da Cândida. Ou, usando a expressão do Pedro, “aquilo que vales enquanto jornalista e o rigor com que fazes jornalismo é o que conta ao final do dia”.
São tudo coisas importantes que todos nós, jornalistas, temos como prioridade: garantir que damos o melhor que conseguimos apurar a quem nos ouve, vê e lê. É essa a nossa função.
Oiça aqui todos os episódios de Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia de um país em guerra: