Na tarde em que conheci Bohdan, não estava à espera de ouvir histórias de bombardeamentos intermináveis, de descrições de pilhas de cadáveres na rua e de outros tantos violentos relatos sobre a vida em Mariupol sob ocupação. Estava com uma enorme dor de costas e marquei uma massagem num consultório em Kyiv. Quando cheguei, estava lá Bohdan. Alto, simpático e muito calmo. Demasiado calmo para quem viveu semanas de uma vida que, para a maior parte de nós, parece um filme de terror.
Bohdan tem 26 anos. Aceitou falar comigo “em on” para contar a experiência pela qual passou em Mariupol, uma cidade no sudeste da Ucrânia, banhada pelo Mar de Azov, que ficou conhecida por causa do complexo metalúrgico e siderúrgico de Azovstal, apelidado de o “último reduto da resistência ucraniana em Mariupol”. O apartamento onde Bohdan vivia com os pais ficava próximo da Azovstal, por isso o massagista diz que ele e os pais estiveram “no epicentro de toda aquela m*rda.”
Bohdan e os pais fugiram do apartamento em que viviam a 4 de abril, depois de uma parte do prédio de 10 andares ter ruído. Caminharam por um percurso cheio de corpos de civis mortos e passaram por um posto de controlo com soldados chechenos, um dos quais lhes disse que se não tivesse gostado deles, “tê-los-ia baleado logo ali.”
Bohdan e os pais saíram de Mariupol em agosto de 2022. A única forma de passar para o território controlado pelos ucranianos foi através da Rússia. A família viajou para a cidade russa de Rostov-on-Don, depois fizeram 1800 km para norte até São Petersburgo. Da Rússia, atravessaram a fronteira para a Estónia, depois Letónia, Lituânia, Polónia e, finalmente, entraram na Ucrânia.
Este é o terceiro episódio do Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra. Com sonoplastia de João Luis Amorim, arte gráfica de Tiago Pereira Santos. Dobragens de João Diogo Correia. A coordenação é de Joana Beleza, direção de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou levar-vos até ao teatro.
* O Expresso adota a grafia Kiev, mas o autor pede que seja usado Kyiv