Manual de Sobrevivência

Aluno de Medicina, viu a casa ruir, caminhou entre dezenas de mortos e teve de roubar comida para sobreviver: esta é a história de Bohdan

Bohdan estava a acabar a especialidade de ginecologia e tinha planos muito otimistas para o futuro quando a invasão em larga escala começou e a cidade de Mariupol passou a ser um dos epicentros da guerra. Viveu sete meses sob ocupação e para sobreviver teve de roubar comida dos apartamentos abandonados dos vizinhos. Oiça aqui a história dele. Eu sou a Iryna Shev e este é o meu Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra

Na tarde em que conheci Bohdan, não estava à espera de ouvir histórias de bombardeamentos intermináveis, de descrições de pilhas de cadáveres na rua e de outros tantos violentos relatos sobre a vida em Mariupol sob ocupação. Estava com uma enorme dor de costas e marquei uma massagem num consultório em Kyiv. Quando cheguei, estava lá Bohdan. Alto, simpático e muito calmo. Demasiado calmo para quem viveu semanas de uma vida que, para a maior parte de nós, parece um filme de terror.

Bohdan tem 26 anos. Aceitou falar comigo “em on” para contar a experiência pela qual passou em Mariupol, uma cidade no sudeste da Ucrânia, banhada pelo Mar de Azov, que ficou conhecida por causa do complexo metalúrgico e siderúrgico de Azovstal, apelidado de o “último reduto da resistência ucraniana em Mariupol”. O apartamento onde Bohdan vivia com os pais ficava próximo da Azovstal, por isso o massagista diz que ele e os pais estiveram “no epicentro de toda aquela m*rda.”



O massagista de Mariupol

Bohdan e os pais fugiram do apartamento em que viviam a 4 de abril, depois de uma parte do prédio de 10 andares ter ruído. Caminharam por um percurso cheio de corpos de civis mortos e passaram por um posto de controlo com soldados chechenos, um dos quais lhes disse que se não tivesse gostado deles, “tê-los-ia baleado logo ali.”

Fotografia tirada por Bohdan três semanas depois do início da grande guerra. Tinham que vestir roupa de rua, dentro de casa, porque as janelas já estavam partidas, fazia frio e correntes de ar.

Bohdan e os pais saíram de Mariupol em agosto de 2022. A única forma de passar para o território controlado pelos ucranianos foi através da Rússia. A família viajou para a cidade russa de Rostov-on-Don, depois fizeram 1800 km para norte até São Petersburgo. Da Rússia, atravessaram a fronteira para a Estónia, depois Letónia, Lituânia, Polónia e, finalmente, entraram na Ucrânia.




Parte do prédio onde Bohdan vivia ruiu, na véspera de a família ter decidido fugir.

Este é o terceiro episódio do Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra. Com sonoplastia de João Luis Amorim, arte gráfica de Tiago Pereira Santos. Dobragens de João Diogo Correia. A coordenação é de Joana Beleza, direção de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou levar-vos até ao teatro.

* O Expresso adota a grafia Kiev, mas o autor pede que seja usado Kyiv