As zonas da cidade com mais marcas da queda de destroços, de drones ou de mísseis, são as que, por norma, têm uma maior afluência aos abrigos. É o caso da zona onde moro onde, assim que soa a sirene, vejo pela janela pessoas a correr para o abrigo, que fica em frente ao meu prédio.
Os alertas de perigo de ataque podem durar meia hora, duas ou seis horas. São accionados, em Kyiv, sobretudo durante o período da noite. E o “guardião” do nosso abrigo, que na verdade é um parque de estacionamento subterrâneo, está sempre pronto para deixar as pessoas entrar. Viktor, nome fictício, contou-me que quando está de serviço não se despe para dormir, porque “nunca se sabe.” Um homem a caminho dos 60 que se emocionou a falar comigo quando lhe perguntei “como está?”
No ano passado, as forças russas atacaram de forma massiva as infraestruturas energéticas da Ucrânia e isso deixou milhares de ucranianos sem eletricidade durante longos períodos de tempo, em várias zonas do país. A zona onde mora a minha avó não ficou de fora. A minha querida avó Maria passou o inverno do ano passado a jogar cartas com as amigas idosas, na casa de uma delas, com uma lâmpada carregada com ‘power bank’ em cima da mesa. Uma forma de se distraírem e de se apoiarem umas às outras.
Tenho reparado, pelas conversas que tenho tido com a população de várias zonas do país, que o maior choque de ter começado uma guerra em larga escala, em fevereiro de 2022, foi para aqueles ucranianos, por norma mais velhos, do leste do país, que acreditavam, genuinamente, que a Ucrânia e a Rússia eram dois povos irmãos. Hoje, sentem-se enganados. Foi isso que me contou, por exemplo, a Vera, uma senhora idosa da região de Sumy: “Mas como pode a Rússia ser um irmão se matou tanta gente? E qual a razão? A Ucrânia não lhes fez nada.”
Este é o segundo episódio do Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra. Tem sonoplastia de João Luis Amorim e arte gráfica de Tiago Pereira Santos. As dobragens são de Ana Alvarinho, Carolina Reis, Catarina Coutinho, Catarina Neves, Graça Costa Pereira e Mariana Xavier. A coordenação de Joana beleza e a direção de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou contar-vos a história do massagista de Mariupol.
* O Expresso adota a grafia Kiev, mas o autor pede que seja usado Kyiv