Humor à Primeira Vista

“Tenho feito espetáculos sucessivos, mas não tenho vaidade. Nunca sei se não estou a três meses de estrear uma desgraça absoluta”

O pior aluno do conservatório, sem jeito para ator - de acordo com o próprio - tornou-se encenador e dramaturgo com a comédia em primeiro plano. Ricardo Neves-Neves é o responsável pela versão mais estúpida - e acredite que é um elogio - de "Noite de Reis", a comédia mais perfeita de Shakespeare. No Humor À Primeira Vista, com Gustavo Carvalho, explica a dificuldade de trabalhar um clássico do teatro, revela porque deseja uma pausa de "100 anos" da escrita e afirma que quer fazer "teatro popular contemporâneo"

Que dúvidas é que surgem a um encenador e dramaturgo quando mexe num clássico?
Em primeiro lugar, há um género de tensão à volta do que é um clássico, entre a reverência e uma espécie de peça em que se toca com pinças para não estragar, que é desfavorável à criação. Quanto mais conhecia o texto, quanto mais vezes o lia, quanto mais traduções e encenações comparava, fui percebendo que a liberdade de pegar num texto clássico não é só uma possibilidade - é na verdade uma necessidade. Sobretudo tratando-se de uma comédia que tem uma ligação com a linguagem atual. Quando perdi o medo comecei a criar.

E até perder o medo?
Até perder o medo é sofrer e transpirar.

Mas no que é que pensas? É em como colocares a tua identidade neste texto?
Não me coloco a mim em primeiro lugar, coloco o texto. No que o próprio autor pretendeu há 420 e tal anos com esta peça. Entender isso significa tomar decisões, avançar para um sítio em que não vou fazer uma homenagem ao texto e ao autor só por si, vou fazer uma ligação com a comédia, com a plateia, com a relação entre a cena e o espetador. E tentar que o público 2024 se ria, eventualmente, nos mesmos sítios que o de 1601, que levem para casa a mesma sensação. Que desperte as mesmas emoções e pensamentos semelhantes.

João Pedro Morais

Podemos ver o encenador como uma pessoa distante, muito culta e que expõe o seu conhecimento ao público. É difícil combater algum pedantismo e assumires-te como um encenador que gosta do ridículo?
Já não se tem a mesma ideia do intelectual que se tinha na altura de Sartre. Era uma estrela por ser intelectual. Não me considero um, mas faço um trabalho que é intelectual. A maior parte do meu trabalho acontece no cérebro. O pedantismo é uma forma de vaidade, tenho dificuldade em tê-la porque os espetáculos sucedem-se - e ainda bem, isso dá-me confiança, estou na profissão e isso dá-me alegria - mas não sabemos se o espetáculo de que hoje gosto e tenho orgulho, e com o qual a maior parte do público tem uma relação positiva… não sei se daqui a três meses não vou estrear uma desgraça absoluta, que não vai correr bem e vai envergonhar-me e à equipa. Há essa possibilidade, não conseguimos prever.

Começa sempre tudo de novo.
Claro que a cada espetáculo vou aprendendo coisas, seja pontos de vista artísticos, mas também técnicos. Abre possibilidades no palco, cada vez o conheço melhor. Dá-me confiança apesar de haver muita coisa que não sei. Basta conversar um quarto de hora com um técnico para perceber a minha ignorância. Mas não consigo ter essa vaidade, tenho até na verdade muita insegurança. Nunca sei para que lado as coisas acontecem. A insegurança não é uma coisa gratuita. Vem de um sítio que é: "E se eu não tiver a ideia?" Porque aquilo que me encomendam são ideias, não é uma coisa que tenho em casa e vou revender. São ideias. E se não tiver ideias? E se o anjo não descer? Se a lâmpada não acender? Não tenho lugar e hora marcada para ter as ideias, podem não vir. A ideia pode vir no dia depois da estreia, o que é catastrófico.


Tiago Pereira Santos

Estás a escrever uma nova peça de teatro para um futuro breve?
Em 2023 escrevi tanto que enjoei. Agora gostava de fazer uma pausa de uns 100 anos. Não estou a pensar voltar a escrever tão cedo. Não me apetece nada neste momento escrever, também como resultado de uma frustração. O ano passado escrevi "O Livro de Pantagruel", foi um projeto que comecei em 2020, para estrear em 2023. Envolveu um trabalho grande de pesquisa, queimei muitas pestanas a ler, tive muitas conversas para poder escrever aquele texto. Fiz uma grande investigação, mais o tempo da escrita em si, os ensaios. Depois esteve oito dias em Lisboa, dois em Loulé e um em Coimbra. Tenho o cenário guardado há um ano, a dar despesa porque pagamos ao metro quadrado, num género de esperança que o espetáculo volte, mas não estou a ver que isso venha a acontecer. É doloroso. Às tantas pergunto-me para o que é que isto serve? E na verdade - venho eu outra vez desresponsabilizar-me - há tantos textos fantásticos escritos, aquilo que é preciso é procurar até encontrar. Para que é que vou estar a dedicar meses todos os anos a escrever para depois estar quatro dias em cena. Serve para quê? Isto é em nome de quê? De dizer que estou a fazer uma coisa de raíz? Quem é que realmente valoriza isto?

E porque é que voltas às coisas de raíz?
Porque sou burro, podia encomendar já feito. Por paixão, pela dose de loucura que é preciso ter para estar nesta profissão. Por este género de amor às vezes não correspondido, por gostar de uma ideia e querer vê-la concretizada, pelo prazer que é esta comichão no cérebro de criar coisas. É uma cócega gira, mas também há um género de desgosto amoroso quando as coisas ficam por aí. Já viste o que é estares muito apaixonado por alguém, parecer que é um amor correspondido e levas uma patada depois de quatro dias. Não pode ser, não há coração que aguente.

Gustavo Carvalho entrevista pessoas para quem a comédia é paixão e profissão. Oiça aqui mais episódios:

Humor à Primeira Vista