A Beleza das Pequenas Coisas

Lila Tiago (parte 1): “Várias criadoras trans esticam o conceito de monstruosidade até lá caberem com sedução. Tento essa potência em palco”

Lila Tiago é a voz das “Fado Bicha” que ocupa um novo lugar queer no fado. Esta artista trans bicha, como a própria se descreve, não se furta ao desconforto que a sua banda provoca por trazer para a canção mais popular e portuguesa do país outras formas de amar. “Não surgimos para incomodar. Mas sabemos que incomodamos um entendimento que abafava artistas como nós no fado.” Contas feitas as “Fado Bicha” fizeram mais de 250 concertos em Portugal, participaram no Festival da Canção e lançaram o disco de estreia, "OCUPAÇÃO", em 2022. Já no próximo dia 17 de abril estreia o documentário “As Fado Bicha”, realizado por Justine Lemahieu. Ouçam-na na primeira parte da conversa com Bernardo Mendonça

Lila é toda audácia e revolução, e canta com carisma, poesia e subversão num corpo, voz e identidade queer que, sem pedir licença, passou a ocupar um lugar novo e necessário no fado. E a dar existência a muitas comunidades que até ali não eram contempladas. Mas que até já existiam no fado. Só eram apagadas da canção.

José Fonseca Fernandes

Lila Tiago chegou ao fado pelo amor à língua e à palavra começou por cantar a solo e à desgarrada nas noites lisboetas, mas logo em 2017 encontrou o seu parceiro musical, o guitarrista João Caçador, com quem formou desde então a dupla “Fado Bicha”, enquanto vocalista e letrista.

E, desde aí, passaram a ser duas corajosas e orgulhosas bichas, que puxaram uma cadeira que não estava lá e sentaram-se à mesa para ocupar um património com os seus corpos e identidades e ousaram trazer para o fado outras formas de amar, de viver o prazer e o desejo.

José Fonseca Fernandes

E fizeram mais. Trouxeram também um novo olhar crítico sobre as feridas coloniais do passado, e seus armários, machismos e outros ‘ismos’.

Duas corajosas e orgulhosas bichas que são resistência coberta de purpurina e insubmissão no meio musical mais tradicional, conservador e marialva português e que se tornaram incontornáveis.

José Fonseca Fernandes

Contas feitas as “Fado Bicha” fizeram até agora mais de 250 concertos, em Portugal e dez países estrangeiros, participaram no Festival da Canção e lançaram o disco de estreia, "OCUPAÇÃO", em junho de 2022.

Como tem sido esta caminhada? Ainda há muitas portas fechadas para elas e muitos lugares por ocupar para as artistas queer nos circuitos dos festivais de verão e outros palcos convencionais? Esta pergunta é-lhe colocada.

José Fonseca Fernandes

Importa escrever que já no próximo dia 17 de abril chega aos cinemas portugueses o documentário “As Fado Bicha”, realizado por Justine Lemahieu, que regista momentos íntimos de Lila e João, desde os bastidores às performances mais arrebatadoras.

Música sem cedências, que questiona e desconforta, porque a arte que agita é sempre alimento da consciência, da democracia e da liberdade.

José Fonseca Fernandes

E é poderosa a forma como desarmadilharam uma certa palavra criada para amesquinhar, ofender, desumanizar as comunidades LGBTQIA+: “Bicha”. Um nome que acumula dois níveis de subalternidade na sociedade: ser bicho e ser feminino.

Lila e João passaram a exibi-la como jóia ao peito.

A vocalista das “Fado Bicha” conta nesta conversa em podcast que se apropriou para si do que chama de “monstruosidade sedutora”. E de se reconhecer no lugar da monstruosidade, enquanto conceito empoderador, criador e libertador.

José Fonseca Fernandes

A cantiga é uma arma que pode aproximar, incluir, trazer mudança? Ou, por vezes, pode abrir mais trincheiras? Este é mais um tema que é discutido.

Certo é que as Fado Bicha são um petardo de orgulho LGBTQIA+ e ativismo social lançando fogo na casa do preconceito e da opressiva tradição.

E levam salas inteiras a dançar, cantar e a ousar ser e sonhar por um mundo mais livre, diverso, justo e desempoeirado.

José Fonseca Fernandes

A par disso, em 2019, Lila e João entraram no espetáculo "Xtròrdinário", no Teatro S. Luiz, e em 2022, em "Casa Portuguesa", no Teatro Nacional D. Maria II, ambos de Pedro Penim.

Lila participou também como atriz no filme "Mulher sem corpo" de António Borges Correia, estreado em 2021, e desenvolveu uma linha de pesquisa performativa com Alice Azevedo, a partir de 2020, com criações para o TBA, o festival Interferências e o Festival 5L.

Nesta conversa reflete-se o facto de em janeiro de 2023, Lila ter feito parte do grupo ativista que contestou o transfake na peça Tudo sobre a minha mãe, de Daniel Gorjão, que culminou na invasão de Keyla Brasil ao palco do S. Luiz.

Um momento que levou a uma discussão na sociedade sobre os lugares de fala e a liberdade da arte, assim como a falta de representatividade das pessoas trans nos palcos e noutros tantos lugares privilegiados da sociedade.

Muita coisa mudou e muito se escreveu para tudo ficar na mesma? Lila responde.

Qual o lugar da moderação quando os poderes mundiais começaram a ficar extremistas e a ameaçar direitos humanos?

José Fonseca Fernandes

Atualmente, Lila diz-se focada não só a escrever música como guiões para cinema. Além de estar envolvida em vários projetos de teatro.

É curioso dar conta que o tema “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues, foi o primeiro fado que atravessou o peito de Lila.

Terá ouvido aos 12 anos, talvez em Arrouquelas, no Ribatejo, que é uma aldeia de atualmente 500 habitantes.

Lila não nasceu lá, nem nunca lá viveu a tempo inteiro, mas disse-me que não consegue dizer que é de outro lugar. O que a liga tanto a essa aldeia? Podem ouvir a resposta no início desta primeira parte.

Lila frequentou depois a escola num bairro periférico de Odivelas. Sofreu violência física e psicológica tanto na escola preparatória quanto na secundária, assim como no bairro onde vivia e até na sua rua.

O ‘bullying’ não é uma coisa destes tempos, passa de geração em geração, e voltou de novo a ser um tema mais discutido por causa da série atualmente mais vista da Netflix.

Uma pandemia social longe de se resolver por cá e em muitos outros países. E que pode deixar marcas emocionais para sempre.

Enquanto era agredida pelos seus pares, aos 13 anos Lila perdeu a mãe que sofria de esclerose múltipla.

Com tudo isso, refugiou-se em casa, num santuário de livros e música - músicas de mulheres zangadas.

Será que Lila canta e escreve também para curar as feridas da criança e a jovem queer que foi? Além de outras reparações históricas e sociais?

É precisamente por aqui que este episódio começa. Pelo passado que está bem lá atrás, para percebermos o que Lila andou até aqui chegar e o que vem aí.

José Fonseca Fernandes

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.

A Beleza das Pequenas Coisas