Judite Canha Fernandes já trabalhou em barcos de pesca do atum e na pesca da lula durante bastante tempo. Isto apesar de enjoar bastante de barco. Estas são algumas das mil e uma histórias que tem para contar no mar alto da sua memória.
Poeta, escritora e dramaturga, Judite Canha Fernandes nasceu no início dos anos 70 numa “ilha em forma de cão sentado com a cabeça inclinada para perscrutar o enigma da água”, como descreveu Herberto Helder a ilha da Madeira.
Aos 8 anos, Judite mudou-se para São Miguel, nos Açores. E, ao longo da vida, ainda viveu em mais quatro ilhas diferentes, pelo menos dois anos em cada uma.
A sua vida profissional conta-se como um álbum de vinil, com um lado A e um lado B, de registos distintos.
No lado B consta o doutoramento em Ciências da Informação, a licenciatura em Ciências do Meio Aquático e a pós-graduação em Biblioteca e Arquivo. Nesse percurso, foi gestora de projetos internacionais, premiada pela Comissão Europeia, criadora do centro de informação CIPA, professora convidada na Universidade dos Açores, e oradora convidada em palestras em várias regiões do mundo. Feminista, entre 2011 e 2016, foi representante da Europa no Comité Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.
E é em 2015 quando Judite Canha Fernandes vira o disco da sua vida para o lado A: Deixa o percurso profissional anterior para dedicar-se por inteiro e para sempre à escrita, desejo que vinha a adiar desde a infância. Desde aí, tem publicado poesia, ficção (romance e conto) e peças de teatro e passou a ser uma das novas vozes da literatura portuguesa a ter debaixo de olho.
O que a levou a adiar tanto tempo uma clara vocação para a literatura? Sentiu-se até aos 40 anos uma ilha sem hipótese de ultrapassar um certo horizonte? É-lhe perguntado na primeira parte deste podcast.
Logo com o seu romance de estreia “Um passo para Sul” (Gradiva, 2019, 2ªED 2020), Judite Canha Fernandes foi distinguida com o Prémio Agustina Bessa-Luís em 2018. O Júri considerou este romance “com um alcance humano e social profundo em que o amor, mas também a violência terrível exercida sobre as mulheres, se constituem as traves mestras do universo existencial das personagens. Com esta mesma obra, entre outras distinções, Judite foi semifinalista do Prémio Oceanos em 2020 e passou a fazer parte do Plano Nacional de Leitura 2020-2027
Também o seu livro de poesia “O mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas” (Urutau, 2017, 2ªED 2021) foi semifinalista no Prémio Oceanos em 2018; o conto “A que horas bate?” foi menção honrosa no Prémio Literário Ferreira de Castro e o seu livro “Curtissimas” (Kazua, 2017) foi Prémio Tatu nacional de Conto, no Brasil, também em 2018. A sua biografia é feita de um sem fim de bolsas e menções honrosas. Qual a importância destes prémios, apoios e bolsas para alguém que vive da escrita? São balões de oxigénio para poder continuar?
Destaque também para o seu livro “A Lista da Mercearia” (Urutau, 2021) que foi menção especial do júri no Prémio Literário Ferreira de Castro em 2021 e inspirou a peça “O coração de Alice” da artista plástica e performer Catarina Fernandes, assim como a performance e filme “Pode separar-se uma artista do seu coração?” de Catarina Fernandes, realizado por Renata Pires-Sola, apresentado em França e Portugal. E ainda foi mote para uma curta de animação de Luís Roque.
Com livros traduzidos para vários países, a obra de Judite Canha Fernandes tem sido objeto de pesquisa em diversas universidades do Brasil, nomeadamente na USP (Universidade de São Paulo).
Judite diz sobre si que é uma romântica exagerada - e que “esse é o seu lugar absolutamente secreto.” O amor e a paixão são o motor da sua vida? Judite responde neste episódio.
Diz que tem um ritmo profundamente lento e sofre de ansiedade desde a infância. Diria que a maioria de nós anda num ritmo demasiado acelerado, tantas vezes atrás de coisa nenhuma, ou “cansados de correr na direção contrária”, como cantava Cazuza em “O tempo não pára”. E o tempo lento é tantas vezes o mais natural e fértil para as ideias. E para uma vida saudável, já agora.
Judite partilhou que nos anos em que viveu na montanha, podia passar semanas sem avistar vivalma. E também o faz na cidade. Aparentemente convive pacificamente com todas estas contradições ou, pelo menos até agora, não se partiu ao meio.
Do mesmo modo que amou a vida nos 40 anos que precisou… para tomar coragem e decidir escrever e partir do zero… para só a isso se dedicar. E agora essa vida lá de trás, o tal lado B, parece outra vida, em que a Judite ainda não era a Judite. “Era, mas não era.” - disse-me ela. Pode alguém ser quem não é? - cantou Sérgio Godinho.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de João Carlos Santos. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
A segunda parte deste episódio será lançada na manhã deste sábado. Boas escutas!