O mote para esta conversa tem como ponto de partida a morte. Tema difícil, doloroso, sobre o qual a maioria das pessoas tenta escapar, adiar, desconversar, apagar. Como se fossemos todas e todos imortais. E escapamos a falar dela, porque “a morte aleija”, como escreveu o meu entrevistado, Nelson Nunes, no seu mais recente livro “Enquanto vamos sobrevivendo a esta doença fatal” (uma exploração pessoal das várias manifestações de morte), editado pela Zigurate.
Este seu último livro mergulha fundo no tema, com rigor e investigação, mas também com humor, porque com a morte também se brinca. Uma obra que nos confronta com os ângulos mortos do assunto e com as perspectivas de quem viveu grandes perdas, quem pensou no suicídio, na eutanásia, ou recebeu uma sentença de morte.
Confirma-se neste livro e nesta conversa em podcast que a partida dos nossos mortos é a morte que vivemos em vida, que o luto é uma luta que nos acompanha durante toda a vida, com mais ou menos serenidade, e que quem fomos para os que partem morre também com eles. Mas há que continuar e normalizar o tema.
E sobre isto Nelson chega a dizer neste podcast: “Uma amiga diz que o grande tabu do século XX e da atualidade não é o sexo, é a morte. É preciso haver uma nesga de intimidade para falarmos sobre a morte. Porque o instinto inicial é ‘que horror, não vamos falar disso’. Mas ligamos a televisão e vemos mortes, vamos ao teatro, ao cinema ou vemos uma série e morre alguém na história. Nas músicas fala-se por vezes da morte, ela está em todo o lado. Temos necessidade de falar nela para expurgar alguma coisa, para termos menos medo, mais ferramentas, mais vocabulário. Como dizia o Bukowski, andar com a morte sempre no bolso para olhar para ela volta e meia. Eu acho que ando com a morte à frente do nariz.”
É trazida para a conversa uma frase do seu livro: “O luto não precisa de ser curado, mas precisa de ter paz”. E fala-se de como é possível rir da própria morte. E das pessoas de quem gostamos. Como é o caso do testemunho desassombrado de Tiago André Alves, a quem foi diagnosticado um cancro terminal aos 30 anos, que é uma lição de vida e de morte que pode ser conhecida no seu livro e que é revelada nesta conversa.
Ao longo desta conversa, Nelson Nunes conta como a ideia da morte é um tema que persegue há muito, para obter mais respostas para algo que o inquieta. Por isso mesmo assinou o ano passado um podcast chamado “Na minha Sepultura”, com muitos outros testemunhos, e tatuou na pele a espirituosa frase “Pré cadáver”. E não há dia em que Nelson não pense na morte. Na sua e na dos outros. Até porque considera que a morte é um barómetro bom para o que andamos a fazer nesta vida.
“A morte desperta-nos um sentido de urgência. Se tivéssemos tempo infinito, pensávamos ‘amanhã faço, para a semana faço, para o ano faço’. Sabendo que vamos morrer, dá-nos esse sentimento de pressa. Eu até o tenho demais. Por isso, tenho 7 livros escritos aos 37 anos. E tenho essa mesma urgência sobre o estar com os outros. Penso, por exemplo, que é melhor ir ver os meus avós, porque daqui a uns tempos poderão não estar cá”.
Vivemos mais e melhor, amamos mais e melhor, se tivermos mais consciência que vamos todos bater a bota, mais tarde ou mais cedo? Pensar sobre a morte pode ser uma espécie de bússola para a vida? E nesta sua pesquisa sobre a morte, o que mais o surpreendeu nas informações que obteve? E o que percebeu mais sobre si? De tanto falar na morte deixou de ter medo de ir desta para melhor? Todas estas questões são-lhe colocadas e é lançada a frase do dramaturgo Bertolt Brecht: “Temam menos a morte e mais a vida insuficiente.”
A curiosidade de Nelson já o levou a assinar vários outros livros de não ficção como o “Com o humor não se brinca” (2016), “Isto não é um livro de receitas” (2017), e “Quem Vamos Queimar Hoje” (2018), assim como um romance - “Preciosa” (2019).
Este último, um livro que é uma carta de amor de um filho à sua mãe. Porque foi ela quem o salvou de ter sido morto pelo pai, porque foi ela quem o impediu de se atirar de um quarto andar e o resgatou da dor.
Esta mulher, que durante anos foi vítima de violência doméstica, teve a coragem de enfrentar o seu carrasco. Salvou-se. E salvou o filho. E nesse livro conta-se o relato desse filho que podia já não estar vivo. E que é a história real de Nelson adaptada a um romance, a misturar ficção e realidade, com personagens inspiradas na sua própria família e na sua própria vivência. Que marcas ficam de uma infância marcada pela violência doméstica? E como a escrita, e a terapia, o têm ajudado a sair do fosso e a curar as feridas do passado?
“Quando tinha 4 anos o meu pai mostrou-me uma pistola numa tasca. E disse que era para matar a minha mãe. Essa memória é minha. Ele era uma ameaça constante em cima de nós. Eu e a minha mãe íamos para casa a olhar por cima do ombro. Vi a minha mãe ser agredida na rua por ele quando eu tinha 5 anos. (...) Escrevi um romance sobre essa experiência de violência doméstica que a minha mãe sofreu, para dar esperança às mulheres e mostrar-lhes que é possível saírem dessa situação. Para não dar mais mundo negro às mulheres que estão naquele horror. Nem todos os casos acabam em morte no telejornal. Com mazelas e traumas é possível saírem dessa situação, libertarem-se do agressor”.
Sobre isto, importa dizer que o número de queixas por violência doméstica tem vindo a aumentar em 2023. Só no primeiro semestre do ano já morreram 12 pessoas. E nunca é demais falar de prevenção e de combate a este tipo de crime, que tem as mulheres como principal alvo.
Quanto a Nelson, falta dizer que antes de se afirmar escritor, trabalhou como jornalista em várias publicações e foi cronista do jornal Público entre 2013 e 2021. Por elas venceu o FITA Literary International Awards na categoria de Melhor Crónica.
No arranque desta segunda parte, Nelson responde a um áudio com uma pergunta surpresa do escritor e dramaturgo Rui Cardoso Martins. E faz o exercício de imaginar as suas últimas palavras em vida. E perante outro áudio surpresa de Carlos Vaz Marques, o seu editor da Zigurate, a que chama de “fera”, revela o título original deste seu novo livro que não foi do agrado de Carlos.
E aqui fala do sentido de urgência com que vive, o gatilho que o leva a escrever, a importância de uma boa relação com um editor, e como se imagina ou não no futuro que aí vem.
O escritor dá também a sua perspetiva sobre os desafios do amor em tempos de Tinder e o que vai mal na forma como a sociedade encara o tema e a ampla diversidade de escolhas.
Nelson fala ainda do sobressalto da guerra que nos entra pelos olhos adentro, na televisão e redes sociais, apela à importância da informação e da leitura aprofundada do tema.
Nesta conversa, Nelson chega a olhar pelo retrovisor até aos tempos em que foi jornalista. O que o levou a mudar de profissão? O desencanto de uma atividade mal paga, stressante e precária? Nelson responde.
Qual foi o gatilho que o levou a dedicar a sua vida à escrita? Escrever é viver mais e fintar a morte? Na semana em que se celebra o dia dos mortos ou dia de finados (oficialmente dos “fiéis defuntos”), falamos sobre a morte e celebramos a vida. E há tempo para Nelson dar a conhecer as músicas que o acompanham, de ler um excerto do seu livro e da obra “A Morte do Pai”, de Karl Ove Knausgard, um dos seus escritores preferidos.
Nesta nova temporada o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. A sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro com o apoio de Salomé Rita.
Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas escutas!