A Beleza das Pequenas Coisas

Filipe Sambado: “Não grito no café ‘sou uma pessoa não binária!’ Nós queremos é que nos tratem bem e que possamos ver a bola juntos”

Se há artistas que são constante reinvenção, metamorfose, disrupção e faísca musical, Filipe Sambado faz parte dessa constelação, com um lugar bem firmado na pop nacional. No seu novo quarto álbum de originais "Três Anos de Escorpião em Touro", Filipe Sambado revela-se num registo mais intimista e melancólico depois da experiência da pandemia e de várias mudanças: a reafirmação de género enquanto pessoa não binária, os desafios de ser “pai ou papita” da filha Celeste, junto com a ansiedade e depressão. E aqui se revela, sem interesse em pedestais. Qual o poder de uma canção? “Ouvirmos o que estávamos a precisar de compreender e não conseguimos explicar. E pode ter o valor de uma dança.” Para ouvirem no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

“Não há solidão comparável à de vivermos longe de nós.” O poema é de André Tecedeiro e fala sobre a dor de não nos cumprirmos, de vivermos fora da nossa vida, da nossa essência, da nossa identidade. Por ignorância, preconceito, medo. Cruzemos esta ideia com a da poeta e escritora americana Maya Angelou, mulher negra feminista e ativista pelos direitos civis, que sobre a “coragem” chegou a dizer numa entrevista: “A coragem é a mais importante de todas as virtudes. Porque sem coragem não se pode praticar nenhuma virtude de forma consistente. Não se pode ser consistente na bondade, na justiça, na humanidade ou generosidade, sem coragem. Porque se não tem coragem, mais tarde ou mais cedo vai parar e dizer ‘ah, a ameaça é muito forte, a dificuldade é muito alta, o desafio é demasiado grande.’”


Filipe Sambado é alguém a quem não falta essa bravura porque nos últimos dois anos passou a dar um nome à sua identidade e assumiu publicamente que é uma pessoa não binária de género fluído. Ou seja, que não se identifica exclusivamente com o género masculino, nem apenas com o feminino, e que prefere para si os pronomes neutros ou femininos. E numa sociedade ainda demasiado machista e patriarcal - que associa o feminino a fraqueza e a lugares menores - pessoas como Filipe Sambado são revolução e ajudam a desconstruirmos e a repensarmos conceitos binários demasiado estanques do que é ser homem e do que é ser mulher, do que é para ele do que é para ela.

“Não chego ao café aos gritos a dizer: ´Sou uma pessoa não binária! Tratem-me pelos pronomes certos!´ Acho que a aceitação faz-se em vários níveis de densidade. Há a aceitação de tolerar só, de não me incomodar. Podem ver-me como a ‘maluquinha’, a ‘extrovertida’. Mas nós gostamos é que nos tratem bem e que possamos ver a bola juntos e que não haja grande problema”, chega a afirmar Filipe Sambado na primeira parte deste podcast.

E sobre isto acrescenta: “Não me sinto uma pessoa corajosa. Tenho muito medo no geral. Mas percebo que para fazer certas coisas que faço tenho de o enfrentar.”

A verdade é que esta sua viagem identitária e afirmação de género foi inspiração e faísca para o seu 4º álbum de originais que acaba de lançar. Filipe Sambado chamou-o “Três Anos de Escorpião em Touro”, considerado o mais íntimo disco longa-duração da artista. Esta obra de quinze temas foi sendo conhecida ao longo deste verão através do álbum visual homónimo com os títulos: “Mau olhado”, o single “Talha Dourada” , o “Choro da Rouca”, “Laranjas/Gajos” e, por último, “Caderninho”.

Sobre o que esteve na base da criação deste disco, Filipe Sambado afirma: "Aconteceram em mim mudanças significativas durante estes ‘Três Anos de Escorpião em Touro’: a minha reafirmação de género, uma reconstrução familiar (ser pai, mãe, papita ou outro papel de parentalidade não binária), reapropriação discursiva, incerteza, ansiedade, depressão, que trouxeram consigo um confronto com a identidade.”

Filipe Sambado é uma artista pop necessária porque se atreve a fazer canções dançáveis sobre temas e narrativas que arejam as cabeças e abrem novas possibilidades, horizontes e discussões. E vai lá atrás à tradição para a reinventar e trazer sonoridades pop e queer que soam a liberdade e futuro. Na mesma linha de Conan Osíris, Pedro Mafama ou Rosalia. Com a mesma garra e subversão de “Vai à Praia” ou “Surma”. Autora dos discos “Vida Salgada” (2016), “Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo” (2018), “Revezo (2020)”, Filipe Sambado tornou-se mais conhecida do grande público em 2020 quando participou no Festival RTP da Canção como compositora e intérprete do tema “Gerbera Amarela do Sul” que figura no seu disco “Revezo”, editado em 2020.

Qual o poder de uma canção? “Pode ser ouvirmos o que estávamos a precisar de compreender, é a ideia de se tornar totalmente inteligível algo que nos ocupa o tempo. Tem esse valor poético,de compreendermos melhor o que não conseguimos explicar. Mas também pode ter o valor de uma dança.”

Nesta fase da sua vida, e com este seu novo disco, Filipe Sambado nunca esteve tão perto de si e da sua essência? Esta é uma das primeiras questões de arranque.

E como olha Sambado para a indústria musical portuguesa? Há mau olhado na pista e “rasteiras” na indústria musical portuguesa? A cantiga é para si uma arma ou uma cura? Filipe Sambado que já conquistou um lugar muito singular no cenário da música nacional responde a tudo neste podcast.

E chega a cantar em estúdio o tema “Choro da Roca”, acompanhado da sua guitarra, tema incluído no seu novo álbum.

Neste tempo acelerado em que vivemos há tempo para refletir nas letras, para sentir, para saborear o silêncio ou uma boa canção?

“Estamos numa fase em que as canções estão com um valor muito interessante. Pode haver pouco tempo para outras coisas, mas a música e o formato canção é uma coisa que se degusta muito bem e vive de um contágio muito emotivo. Mesmo o Tik Tok tem um lado muito giro, a forma como as pessoas se sentem próximas, mesmo em grupos de amigos, o facto de fazerem um dancinha a 3 ou a 4. Aquilo ganha um efeito nostálgico.”

E, no final desta primeira parte, Filipe recebe a surpresa do testemunho de um áudio gravado pela sua companheira, a atriz Cecília Henriques.


No arranque da segunda parte, Cecília Henriques, companheira de Filipe, deixa um testemunho de amor apaixonado, e completa com a pergunta: “Como joga Filipe com a procura de criar um álbum que seja interessante, representativo e desafiante para si e, ao mesmo tempo, legível e audível para o público? Não quer saber? Não pensa no público, apenas no que sente? Preocupa-se em fazer hits? O compromisso é difícil?”

E aqui é recordado o início desta história de amor, já que Filipe até se afirmar na música, Sambado fez vários biscates, nomeadamente foi perchista de telenovelas, ou seja era uma das pessoas que segurava o microfone nas cenas. E foi assim que conheceu Cecília. Mas a história tem várias nuances, e é pontuada com muito humor.

“A primeira vez que eu e a Cecília nos beijámos foi no Lux, na celebração do seu aniversário. Fui jantar com um grupo de amigos dela, e ela tinha preparado aquilo de uma forma muito atípica. Basicamente havia uma mesa só para mim e para ela. Muito cómico. A sensação de todo esse jantar era que aquilo era um ‘date’, um encontro só nosso com espectadores. Deu certo.”

E ainda se fala sobre os desafios da paternidade e de uma relação amorosa longa, saúde mental e como olha para o futuro e para o espelho retrovisor do seu passado. E também como gere o ego na fogueira das vaidades.

“Sobre o ego procuro criar um escudo à volta desse balão, que não permite que esvazie, nem que encha mais. Comecei tarde o meu percurso musical a solo e o sucesso também veio numa fase mais madura. Isso ajudou. Mas tenho a certeza que houve momentos menos criteriosos em que essa fleuma cresceu por isso. Houve tempos em que mandei umas ‘divices’, momentos de arrogância que vêm desse lado, e que têm de ser acautelados.”, afirma Sambado.


Como é habitual, nesta segunda parte do podcast ainda há espaço para mais música e para a poesia.

Sobre o seu novo disco “Três Anos de Escorpião em Touro”, que já pode ser ouvido em todas as plataformas, tomem nota dos próximos concertos de Filipe Sambado: Dia 16 novembro - Sambado atua no Lux Frágil, Lisboa. E dia 23 novembro atua no auditório CCOP, no Porto.

Nesta nova temporada o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas conversas!


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