É o pior da Humanidade: a bondade postiça, a indulgência dos sonsos. E, neste momento, estamos submersos nessa maionese insuportável que é fabricada por um certo tipo de concidadão que tem um lugar reservado no sexto círculo do inferno; são aquelas pessoas que querem ser tão fofinhas, tão queridas, tão especiais, que acabam por revelar um monstruoso egoísmo e, como se diz agora, um perturbador afeto pelo pós-verdade; um pós-verdade fofinho, claro, mas um pós-verdade. É a tribo do #ficaremcasa, os génios que achavam que #iaficartudobem a partir do seu imenso privilégio; ficaram a fazer vídeos intimistas nas suas varandas enquanto lá em baixo os desgraçados mantinham as sociedades a funcionar durante os confinamentos autoindulgentes cujas terríveis consequências ainda hoje nos marcam (é incrível ver como se debate a adolescência em 2025 sem se falar dos confinamentos draconianos de 2020-22; é como se não tivessem existido). E, agora, depois do apagão, estes génios voltaram dos mortos e garantem-nos que o apagão nos deu uma lição, garantem-nos que isto de ter net, eletricidade e conforto é uma prisão e que o paraíso está no antigamente, como se em 1980 as pessoas parassem tudo às segundas-feiras para beberem umas jolas ao sol. A forma como se romantiza a sociedade do passado — que era muito mais difícil a todos os níveis — é algo que me ultrapassa e inquieta. Se não sabem a sorte que têm por viver nas sociedades mais cómodas, saudáveis e seguras da história da humanidade, então as pessoas nunca vão lutar para defendê-las e limitar-se-ão a responder com excessos individuais e emocionais; uns dizem que viram o seu verdadeiro “eu” depois do apagão retirar o entulho da civilização de cima da espontaneidade; outros veem um apocalipse porque não conseguiram chegar à aula de pilates.
Exclusivo
Dou um calduço à próxima pessoa que disser que descobriu o seu “eu” no apagão
Mostrámos que somos uma sociedade sábia, antiga, orgânica, que não somos um cenário de “Walking Dead” ou “Mad Max”. Mas isso não é o mesmo que ver no apagão um retiro à “White Lotus” em busca do meu eu verdadeiro