Neste início de crónica, apresento-vos uma ideia para um filme dentro do género do thriller psicológico:
Na Bélgica, nos dias de hoje, um estudante de ginecologia sai à noite num bar estudantil. À vinda, oferece-se para acompanhar uma estudante nitidamente embriagada até à sua residência. Depois de uns beijos e de reparar que a estudante não se encontrava em condições de dar o seu consentimento, o jovem estudante viola a rapariga.
O juiz do caso, apesar de considerar o estudante culpado, decide ordenar suspender a imposição de pena, já que defende que este jovem estudante de ginecologia — repito, de ginecologia — culpado de uma violação tem um futuro promissor pela frente. Assim, sem sequer condenado a uma pena suspensa, o estudante sai em liberdade.
Como voto de fé no violador, o juiz belga delibera que só será imposta uma pena suspensa ao jovem estudante se nos próximos cinco anos este cometer outro crime. Porque nenhum jovem sem antecedentes criminais que uma jovem merece ser excluído socialmente... Com certeza, o jovem violador irá perceber a sua responsabilidade no contexto do crime ao ficar em liberdade. A este aviso do juiz, equiparável à reprimenda de um pai que descobre que o filho adolescente anda a fumar e o avisa sobre os perigos do tabaco, junta-se a boa vontade do violador que se autopropõe a pagar 3800€ em ‘danos civis à sua vítima’. Além disso, o aluno de ginecologia encontra-se temporariamente suspenso.
Tendo em conta que a propina anual do seu curso de medicina está tabelado com o valor de 2533,10€, o que vai a pagar à vítima é equivalente, quase exatamente, a um ano e meio de propinas. Assim, no tom mais sombrio possível pergunto: será que deste caso poderá resultar num Manual de Impunidade do Violador que taxa uma primeira ofensa de violação com o valor de um ano e meio de propinas, conforme a área do contexto do crime?
Agora, percebamos como esta descrição não é fruto da imaginação de um caso macabro, mas de algo factual. O crime aconteceu no dia 8 de março de 2023, embora a não-sentença apenas tenha sido decidida recentemente.
Tendo em conta o alegado crime de violação em Loures, Portugal, juntamente com a captação e partilha de imagens sem consentimento, levado a cabo por três rapazes entre os 17 e os 19 anos, pergunto-me se este Manual da Impunidade do Violador anda a ser passado por WhatsApp, à semelhança das antigas correntes de emails com vírus. Relembro que cerca de 32 mil pessoas viram o vídeo — deste crime da violação da rapariga de 16 anos — e nenhuma o denunciou às autoridades. Citando Inês Marinho, da associação ‘Não Partilhes’ em entrevista na SIC Notícias:
“A violência sexual contra as mulheres estão completamente banalizada dos agressores sentem-se impunes.”
Esta frase, que ilustra tão bem o atrevimento de chamar a esta conduta um Manual de Impunidade do Violador, relembrou-me do filme “Very Promising Young Woman”, realizado por Emerald Fennell, que estreou em 2020.
O enredo do filme centra-se em torno da reação traumática de Cassie à violação da melhor amiga, Nina. Quando ambas eram estudantes de medicina, um colega de curso, Alexander Monroe, violou Nina, chamando os amigos para ver, tendo um deles filmado o crime. Al Monroe saiu impune nos seus tempos de estudante e, após a morte trágica de Nina, Cassie procura vingança com afinco. Na sua demanda, Cassie encontra-se com a diretora da faculdade, Dean Walker (aprecio especificamente ter sido escolhida uma diretora mulher, para mostrar como o machismo é mesmo estrutural). Quando confrontada com o caso, Walker tem a típica reação misógina esperada em várias fases:
- Desvaloriza a situação, visto que recebe uma a duas acusações do género por semana;
- Garante que terá avaliado devidamente a situação, mesmo quando Nina lhe diz que não o havia feito;
- Culpa, antes de mais, o facto de Nina estar embriagada quando foi violada, porque tal terá feito com que a memória dela não seja fiável;
- Culpa mais uma vez a vítima porque se colocou naquela situação vulnerável, dizendo que “esse tipo de escolhas, esses erros, podem ser muito prejudiciais e lamentáveis”;
- Refere como seria injusto colocar em risco o futuro de um rapaz jovem em risco por causa de uma acusação dessas;
- Walker confessa que valoriza a palavra do rapaz mais do que a palavra da rapariga, tendo em conta a quantidade de acusações que recebe e a injustiça que seria pôr em risco o futuro promissor do rapaz.
Não tivesse este filme estreado antes do crime de violação na Bélgica, poderia ter servido de inspiração para a película. As duas situações fazem pensar: o trauma, o presente e o futuro da vítima valem menos do que o futuro do violador? A vítima-sobrevivente não tem direito a ter um futuro promissor?
Se o caso belga e o caso de Loures fosse a base para a criação do Manual da Impunidade do Violador, nele poder-se-ia ler, em modo de profecia:
Poderás violar uma mulher sem seres preso, mas só poderás ser apanhado uma vez e não podes ter antecedentes criminais. Mesmo na eventualidade de seres considerado culpado, no máximo ficarás com pena suspensa. Para ficares bem-visto, oferece-te a pagar uma quantia à vítima, de alguns milhares de euros, mas não é preciso ultrapassar os quatro. A tua vida continuará. Tentarás redimir-te dos teus pecados, e a vítima lidará como puder com o seu trauma.
A esta construção sistémica que protege os violadores e desconsidera totalmente a palavra da vítima e até as provas efetivas do crime, não se pode chamar de ‘Justiça’: trata-se de misoginia no seu auge, no seu estado puro de desigualdade de género, ilustrativa do privilégio masculino.
Outro exemplo real desta construção sistémica é o facto de continuamente nos chegarem notícias de imagens íntimas partilhadas e até captadas sem o consentimento das raparigas visadas. Veja-se o mais recente caso:“Várias raparigas foram fotografadas debaixo das saias” dirigentes estudantis da AEFEUP acusados de partilhar fotos e vídeos de alunas sem autorização — prática já se prolongaria hºa vários anos (notícia do Jornal Expresso).
Deixo-vos com uma provocação óbvia e um pedido. E se, em vez de passarem o Manual da Impunidade do Violador uns aos outros, tomassem consciência do que consiste o consentimento e se apostasse na prevenção da violência sexual? Por fim, convido-vos a assinarem a Petição contra a violência sobre as mulheres, para que, o Código Penal português seja modificado de forma a proteger a vítima.