Neste arranque de 2025, experienciamos a angústia distópica de quem nunca pensou estar dentro das páginas de um romance de Margaret Atwood, Orwell ou a viver na pele a ideia de Philip Roth, quando escreveu a “Conspiração contra a América”.
Abrimos as páginas dos jornais e não queremos acreditar em cada ordem executiva de Trump, na legitimação racista e xenófoba de vários líderes europeus, na vulgaridade ordinária com que o Chega vocifera em cada intervenção. Ouvimos as palavras que já achávamos que o facto de termos estudados história impediam de ser proferidas. Somos da geração que cresceu na certeza ingénua de que o mal mais pleno não teria espaço para voltar num mundo ocidental que permitiu um Holocausto.
A geração de judeus que cresceu nos EUA, em França, em Inglaterra e em muitos outros países nas décadas de 1960 e 1970 sempre se perguntou como era possível que um país com níveis de educação relativamente elevados - a Alemanha - pudesse descer de uma democracia para a forma mais brutal e bélica de ditadura em apenas alguns anos. Parecia impossível. Mas não era.
O mundo não viu ou não quis ver o que se estava a preparar. Relativizou-se o humanismo, desumanizou-se o outro e, dessa forma, todos se desumanizaram. Hoje também. Hoje também estamos a assistir passivamente ao desmantelar dos pactos sociais e humanos que temos conseguido firmar.
Atentemos nestas frases retiradas de várias intervenções públicas:
“O sistema político falhou. Os políticos corruptos e as elites traíram o povo. Temos de nos libertar.” Terá sido dito por André Ventura, em 2021, quando se referiu à necessidade de limpar Portugal do sistema corrupto, dominado por uma elite que despreza as pessoas reais?
“Vamos restaurar a ordem e punir aqueles que têm corrompido a nossa sociedade.” Palavras do líder do Chega, em 2019, quando afirmou que os criminosos devem ter medo e que é preciso dar força à polícia para agir sem temer os políticos fracos?
“Tentam calar-nos, por que têm medo da verdade que trazemos às pessoas.” Será uma resposta de André Ventura, no parlamento, em 2021, depois de ser criticado, quando afirma que o querem calar por dizer o que os outros têm medo de dizer?
“Infiltraram-se na nossa sociedade e corrompem-na”. Será uma afirmação de Ventura sobre as comunidades ciganas, no debate presidencial de 2021, quando se refere a estes cidadãos como um grupo instalado que vive dos nossos impostos?
E o que dizem aqueles que o Chega admira, com que se alia e posa em fotos no contexto internacional?
“[o nosso país] deve levantar-se de novo. Não será novamente humilhado.” Será um excerto do discurso de Salvini, em 2019, quando afirmou que a Itália é humilhada por Bruxelas e que precisa de se levantar? Ou são palavras de Geert Wilders, em 2017, quando disse que os Países Baixos têm de pertencer de novo aos holandeses e recuperar a sua dignidade?
“Um povo que não quer preservar a sua pureza, vai um dia desaparecer.” Em 2017, na campanha presidencial, Marine Le Pen, idolada pelo Chega, afirmou que a imigração apaga a civilização ocidental e que a França corre o risco de desaparecer? Ou talvez sejam palavras de Viktor Orbán, em 2015, quando se referia a uma alegada invasão de imigrantes que punha em risco a identidade da civilização europeia.
É também necessário rever as palavras de movimentos neo-conservadores que emergem por todo o lado, reprimindo direitos humanos conquistados, desprezando a igualdade de género, pugnando pela chamada “família tradicional” ou cavalgando a ideia de uma identidade única e nacional. Lembram-se do livro “Identidade e Família”, apresentado pelo ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho a cuja apresentação André Ventura assistiu deleitado? Ou das declarações recorrentes da deputada Rita Matias contra o feminismo e aquilo que ela e outros batizaram de “ideologia de género”? Vejam-se estas citações, que talvez possam se desse livro ou dessas declarações:
“Devemos elevar o estatuto do casamento e dar-lhe a consagração de uma instituição. O casamento é, na verdade, a condição de base para filhos saudáveis. Ainda assim, o casamento não pode ser um fim em si mesmo – deve servir um objetivo maior, a preservação de [Portugal].”
Segunda citação:
“O homem defende o povo, tal como a mulher defende a família. A igualdade de direitos da mulher traduz-se em ela ser tratada com a consideração elevada que merece nas áreas da vida que a natureza lhe atribui.”
Terceira citação:
“Há apenas duas possibilidades [em Portugal]: não se imagine que o povo se identificará sempre com o partido do centro, o partido dos compromissos; um dia votará por aqueles que predisseram de forma mais consistente a ruína do país e que procuraram evitar essa ruína. E esse partido ou vai ser de esquerda – o que nos conduzirá à destruição, à sovietização – ou então vai ser um partido de direita.”
Chegados aqui, é preciso esclarecer. Nenhuma das nove citações anteriores é de Ventura, Matias, Salvini, Le Pen, Wilders, Orbán ou dos autores de “Identidade e Família”.
Todas são de discursos e textos de Adolf Hitler. Mas nenhuma nos é estranha nos dias que vivemos. Todas são, mutatis mutandis, parafraseadas nas alocuções destes políticos e autores. Não há diferença. As semelhanças gritam e insultam-nos na nossa humanidade.
Que não haja dúvidas. Nos anos 30 do século passado, assistiu-se passivamente ao crescimento do horror. Nos anos 20 deste século, as palavras repetem-se. Deixou de haver pruridos na colagem a Hitler. Hitler e os seus aliados e apoiantes renascem em cada declaração desta extrema-direita populista, que tem vindo a legitimar o mal, a banalizar o ódio, a eleger inimigos comuns, a afirmar o nacionalismo e a identidade nacional como forma de opressão, a vitimizar-se perante a crítica, a defender o fechamento de fronteiras, a expulsão e a deportação, a defender os recuos na igualdade e no respeito pela diferença.
Não acreditamos em coincidências. Estamos perante políticos que sabem o que dizem e onde se inspiram. As palavras são praticamente as mesmas. As ideias são exatamente as mesmas. Ontem foram os judeus, os ciganos, os deficientes, os homossexuais. Hoje são praticamente os mesmos. Ontem mataram-nos e exterminaram-nos, porque não foram travados a tempo, porque a propaganda e as frases fáceis falaram mais alto do que a razão, a emoção e o humanismo.
Eles sabem que se inspiram em Hitler. Caso contrário, não teriam discursos tão decalcados e semelhantes.
Crescemos horrorizados com a história do século passado. Está nas nossas mãos não permitir que se repita. Está no nosso voto e na nossa consciência individual e coletiva denunciar a semelhança, tornar claro que as palavras de hoje de Ventura, Trump, Salvini, Le Pen são as palavras de ontem de Adolf Hitler. Sem tirar nem pôr.