Opinião

Porquê ler Camões? Entre o desejo e a realidade

Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido, tem sido um desafio

No ano em que se celebram os 500 anos do nascimento de Camões, vale a pena interrogarmo-nos sobre o impacto que conferências, concursos, produções audiovisuais, peças teatrais, filmes e demais iniciativas terão na leitura da sua obra.

Poder-se-ia argumentar que Camões merece todas as homenagens, ainda que não seja amplamente lido, tal como se celebram Vasco da Gama e outros heróis de feitos diversos. Contudo, sendo os feitos de Camões essencialmente literários, parece-me que, sem o lermos mais e melhor, qualquer homenagem ficará sempre aquém do Bojador.

Ler Camões é, sem dúvida, uma questão de conhecimento cultural. Figura maior da literatura portuguesa, a sua obra integra a construção da nossa identidade e da nossa memória histórica. Será esse um argumento suficiente para levar alguém a ler os seus sonetos ou Os Lusíadas? Provavelmente, não. O conhecimento cultural pode impor uma leitura, mas não necessariamente despertar o desejo de ler. O verdadeiro desejo de ler Camões surge quando a sua obra nos interpela diretamente, quando nela reconhecemos ecos das nossas inquietações e desafios e quando estabelecemos um diálogo autêntico com os seus textos.

I. O peso da cultura e o desafio da motivação

Camões é um dos pilares da cultura portuguesa. Conhecê-lo é compreender a epopeia nacional, a expansão marítima e a mitologia literária que moldou a visão ocidental do mundo. É também compreender o seu papel na consolidação da língua portuguesa e na riqueza da sua diversidade.

Nas escolas, nos manuais e nos discursos institucionais, Camões é um autor reverenciado. Mas será que essa abordagem cultural, centrada na sua relevância histórica e estética, gera leitores de Camões? Não serão leitores de Camões aqueles que, por escolha própria, num momento de lazer e fruição, pegam n’ Os Lusíadas e leem um canto, ou tiram da estante um volume da lírica e leem um soneto ou uma canção? Muitas vezes, o peso institucional produz o efeito contrário: Camões torna-se um nome distante, associado à obrigação e não ao prazer da descoberta. Assim, podemos sempre juntar-nos ao coro das vozes que o enaltecem, sem nunca o ler.

Se a cultura fosse critério suficiente para despertar o gosto pela leitura, ninguém teria dificuldades em ler Homero, Dante ou Shakespeare. Sabemos que não é assim. O conhecimento da relevância histórica pode ser um convite à leitura, mas nunca é, por si só, motivação suficiente nem porta de entrada para o texto. Confundir admiração com leitura é confundir desejo com realidade.

Ainda assim, o critério do conhecimento cultural é relevante o suficiente para justificar a leitura de Camões na escola. Assim como se ensina a fotossíntese, o funcionamento do corpo humano ou a importância de figuras históricas, também se deve ensinar Camões. Trata-se de um conhecimento essencial, cuja transmissão cabe à escola, sob pena de formarmos alunos alheios a elementos fundamentais da sua identidade cultural e histórica.

II. O que pode despertar o desejo de ler Camões?

O que verdadeiramente desperta a vontade de ler é o encontro pessoal do leitor com o texto. Camões não nos interessa apenas pela sua grandiosidade literária, mas porque trata temas que nos dizem respeito: a perda, o amor, a luta contra a adversidade, a desilusão, a glória efémera — experiências universais e muito humanas, que continuam a ressoar em nós. No entanto, essa constatação, por si só, não basta para suscitar o desejo de ler Camões.

É preciso vivê-lo, experimentá-lo, envolvermo-nos criticamente na sua leitura para o aproximarmos da nossa realidade e do nosso desenvolvimento pessoal e social. É necessário questioná-lo e discuti-lo. Não podemos ignorar um obstáculo real: a distância na linguagem e no contexto histórico, que se soma à complexidade estilística da sua escrita. A mestria de Camões não é de apreensão imediata. A beleza da sua escrita é complexa e requer mediação.

Para leitores menos experientes, essa mediação é indispensável. No contexto escolar, o mediador é o professor, que deve orientar os alunos na exploração do poema, na descoberta das suas chaves de leitura, na formulação de questões que os envolvam no texto. Deve ensiná-los a ler os poemas em voz alta, a sentir os seus ritmos e sonoridades, a captar as emoções que o poeta quis transmitir.

Este trabalho é incomparavelmente mais produtivo do que algumas abordagens escolares — como a mera identificação de esquemas rimáticos (que são sempre os mesmos, basta aprenderem uma vez), a análise de orações ou o preenchimento de questionários mecânicos. Mediar a leitura de Camões não é parafraseá-lo para o tornar mais acessível. Há quem simplifique os seus poemas em versões modernizadas ou os acompanhe de interpretações fechadas, prontas a servir, mas esse processo não favorece o verdadeiro encontro do leitor com o texto.

O papel do mediador é iluminar o caminho — destacar palavras que se associam em imagens, identificar a intencionalidade de repetições e omissões, explorar a sonoridade dos versos e, sobretudo, levantar questões que estimulem o pensamento crítico. Devem ser questões de fundo, que desafiem os alunos a refletir, a comparar, a tomar posições.

Vejamos, como exemplo, os tão conhecidos versos Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente. Por que razão o amor é uma ferida? Pensemos em nós: como nos sentimos quando pensamos no amor? O que nos dói? Onde nos dói? Mesmo um amor feliz e correspondido pode doer? Porquê? Será a nossa vulnerabilidade? O medo de perder o outro? O medo de nos perdermos? Trata-se de uma ferida feita de traumas do passado ou uma ferida presente?

Sem estas interrogações, de que serve afirmar que o amor é uma emoção universal e que, por isso, vale a pena ler Camões?

Outro exemplo: que sentido faz estudar o Adamastor sem refletir sobre os nossos próprios Adamastores? Não me refiro a cães ou peluches com esse nome, mas ao “cabo” que cada um precisa de dobrar e que nos impede de avançar, ao medo que nos paralisa, ao receio de não sermos capazes, de não termos forças, de não correspondermos às expectativas que nos são impostas. Cada um carrega o seu monstro pessoal e cada um sabe como o alimenta.

Camões não é apenas um autor do passado, é um autor que pode ajudar-nos a compreender o presente. Porém, se o lermos como um exercício de erudição, talvez fiquemos apenas com a noção da sua importância. Se, porém, o lermos como um autor que ilumina a nossa vida, pode tornar-se um verdadeiro companheiro de reflexão.

A escola deve cumprir ambos os papéis: ler Camões pelo seu valor cultural e criar momentos de reflexão em que a sua leitura contribua para o crescimento pessoal e social dos alunos. Se não o fizer, falha no seu mandato e, acima de tudo, falha no propósito maior da leitura de literatura.

Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido, tem sido um desafio. Para responder a esse desafio, o Plano Nacional de Leitura prepara uma publicação com propostas de leitura da sua lírica, com textos originais de Helder Macedo e Isabel Rio Novo, ilustrações de João Fazenda e sugestões de leitura da equipa do Plano.

O objetivo é precisamente este: questionar e propor olhares críticos e pessoais sobre Camões, criando pistas para esse tão necessário encontro entre desejo e realidade. O desejo de que Camões seja um autor lido, e não apenas reverenciado, tem demorado a realizar-se.