Quando o Deepseek, a nova aplicação de Inteligência Artificial feita na China, foi apresentada com estrondo, a semana passada, a grande questão pareceu ser sobre se este
sucesso provava que a China já não era uma economia de cópia (há muito que não é), se provava que a guerra dos chips tinha mudado, e se provava que a competição pela liderança nesta tecnologia era maior do que esperado. São questões importantes. Mas um exercício aparentemente fútil revelou uma coisa muito mais importante. Vamos confiar na inteligência de quem? Do regime chinês? Ou, alternativamente, na de Elon Musk ou de um qualquer outro amigo de Trump? E isso é melhor?
Por enquanto, a Inteligência Artificial ainda é muito humana. Basta fazer algumas perguntas para ver quanto.
Assim que saiu o Deepseek, várias pessoas começaram a testar as repostas da inteligência artificial chinesa com a que temos disponível, o Chat GPT e outros, fundamentalmente americana. A publicação alemã Deutsche Welle fez algumas perguntas incómodas. Sobre Taiwan, Tiananmen, Xinjiang ou os Uigures. Em todos estes temas, e noutros, a aplicação chinesa, sobretudo na versão em língua chinesa, mas também em inglês, dá resultados (ou recusa dar) completamente alinhados com a narrativa oficial do Partido Comunista Chinês. Feitas as mesmas perguntas, ou outras incómodas para o Ocidente, às aplicações ocidentais, as respostas não são censuradas, são mais plurais e mais próximas do que reconhecemos como verdade. E é aqui que o problema se coloca.
Comparar a resposta do Chat GPT versus a do Deepseek à pergunta sobre quantos presos políticos há na China e nos Estados Unidos da América ou se se Xi Jinping se parece com o urso dos desenhos animados Winnie the Pooh, e comparar essas com a reposta à pergunta sobre se António Guterres se parece, não é uma brincadeira. É um teste sério.
Por enquanto, a Inteligência Artifical é sobretudo o resultado das instruções que os seus muito humanos criadores determinam. Pode colher infinitas informações, comparar infinitos dados, computar a infinitas velocidades. Mas continua a dar algumas respostas, como aquelas ali acima, que mostram como ainda é uma coisa muito humana.
Uns meses antes de o Deepseek sair, Sam Altman, o homem da Open AI, dizia no Washingotn Post que “o domínio americano da indústria (da Inteligência Artificial) era necessário para garantir uma "visão democrática para a IA”. As últimas semanas desactualizaram brutalmente esta afirmação.
Elon Musk é um dos tecnocapitalistas globais que está na corrida pela liderança da Inteligência Artificial. Elon Musk é, também, o homem que pertence à Administração de Trump, que ataca a legitimidade do governo do Reino Unido, que usa o X, a sua plataforma, para promover a AfD, o partido extremista alemão, e que dissemina mentiras descaradas no X, para promover as suas ideais.
A pergunta óbvia, que Sam Altman não antecipou que se colocasse, quando escreveu no Washignton Post há mais de seis meses, mas que se coloca agora, depois da eleição de Trump, da proximidade das grandes tecnológicas americanas com o novo presidente, do que Elon Musk tem feito, mas também do que outras grandes tecnológicas têm feito, é óbvia e trágica para a América e o Ocidente: entre uma Inteligência Artificial que nos oferece as verdades de Xi Jinping e do Partido Comunista Chinês e outra que não sabemos se um dia não nos oferecerá a verdade de Elon Musk, Trump ou companhia, a escolha democrática é assim tão óbvia? Obviamente que não.
O argumento “não podemos confiar nos chineses” já não se traduz em “confiamos nos americanos”. Esse estrago está feito. Claro que a Europa não fará uma IA Europeia só porque quer ou, muito menos, só porque a regula, mas o argumento perdeu-se. E esse é o maior prejuízo para a América (e para o Ocidente) que Trump e companhia podiam ter feito.
Se a História do fim do Ocidente passar por 2025, Elon Musk será o Imperador Nero e Trump terá sido quem lhe deu a caixa de fósforos. (A inversão de papéis é intencional.)
Com o Deepseek, fica mais clara a ameaça da IA. Mas não ser chinês não chega. Ser americano já não é garantia de que estamos, ou está a democracia, protegidos.
Como escreve o Adolfo Mesquita Nunes na revista do Expresso desta semana, “a escala, a velocidade e o design intencional dos sistemas digitais e da IA transformam-na num problema novo. Não estamos perante a disseminação espontânea de conteúdos falsos, mas diante de mecanismos que podem ser deliberadamente concebidos, ou desviados, para tornar a desinformação persuasiva, personalizada e inescapável”.
Estamos prestes a perder a ideia de verdade e a ganhar a ideia da verdade de cada um. E nessa história, que nos aterroriza por antecipação, descobrimos que não podemos confiar no velho líder Ocidental. Dificilmente podia um mundo novo começar de pior maneira.