Já passaram mais de 30 anos e, sim, ainda me lembro com detalhe minucioso de algumas caras pasmadas, corpos frágeis em que agarrei, cheiros que há tanto tempo já se deviam ter esbatido. Nunca tive a ânsia pornográfica de recontar esta história, e se volto a ela é porque há uma razão que o ultrapassa. Custa-me, aliás, muito, ter de a reviver. Há mesmo episódios que nunca escrevi dada a brutalidade e a inverosimilhança. Serei breve. Falo de quando em 1991 se descobriu que na Roménia havia dezenas de milhares de crianças institucionalizadas em depósitos de morte, os Camin Spital. A AMI foi das primeiras ONG a colocar equipas médicas num desses locais de horror. O fotógrafo Alfredo Cunha e eu acompanhámos. Era a minha primeira reportagem internacional. Dentro de um edifício gelado, amontoavam-se crianças deixadas para morrer. Umas, as mais velhas, trancadas em quartos nojentos. Outras, mais pequenas, deitadas às duas e três em berços onde defecavam e passavam anos sem nunca terem tido um toque humano. Algumas tinham vindo apenas com uma pequena deficiência, mas ao fim de anos abandonadas ali não sabiam falar e nem tinham saído da posição fetal, e replicavam os movimentos dos autistas. O cheiro era de tal forma atordoante que o Alfredo vomitava antes de entrar. Ao fim de uns dias, estávamos habituados e as crianças escalavam por nós. Os “irrecuperáveis” eram bebés abandonados pelos pais ou tirados pelo Estado, seguindo a “ciência de defectologia” soviética. Muitos em Portugal ainda se lembram da reportagem em papel. Eu arrumei-a na cabeça, junto a outras igualmente terríveis. Nunca procurei saber o que teria acontecido a todas aquelas crianças.
Exclusivo
O “colapso da compaixão”
Há 30 anos, uma reportagem de TV enchia aviões de casais bem-intencionados para salvar crianças. Hoje, discute-se nas redes sociais quem tem mais empatia