Opinião

Um homem irritado e uma polícia desorientada

Ex-jornalista do Expresso, João Garcia olha com preocupação para a atuação das forças policiais. “A nossa PSP não pode dar imagem de estar em roda livre e sem regras de intervenção claras, conhecidas e sancionadas pelo poder democrático. O poder ‘civil’ não pode andar alheado do que se passa, nas esquadras e nas ações de formação”

O homem estava irritado. A polícia tinha-o mandado parar, sem motivo aparente. Três agentes obrigaram-no a sair do carro, apontando-lhe as respetivas pistolas. De joelhos fletidos, braços estendidos, estavam na típica posição de quem prepara um tiro certeiro.

O homem ficou ainda mais irritado. Já fora do carro, ainda na mira das três armas, mandaram-no deitar-se no chão.

Estavam a abusar e a ira do condutor subiu. Com gestos bruscos, despiu o blusão, levantou a camisola, talvez para mostrar que não tinha armas à cintura, e desfez-se de uma sacola que trazia a tiracolo. Não lhe apetecia obedecer, como era de esperar.

Mas nada disto chegou para satisfazer os guardas. Que se deitasse no chão, insistiram. Ele achou que não fazia qualquer sentido e manteve-se como estava. As armas continuavam apontadas.

Duas rasteiras depois, sem qualquer cerimónia, estava deitado de cara no alcatrão, algemado e, parece, com pelo menos um joelho sobre a omoplata. Imobilização típica das polícias que vemos, em filmes norte-americanos a prender traficantes.

Aconteceu tudo isto no Far West? Num escuro beco de Chicago? Um dos agentes era o Dirty Harry? Nada disso, foi numa das rotundas de entrada da Cova da Moura, espaço amplo e iluminado, já os tumultos estavam mais controlados.

Entretanto chega outro automóvel, que um cívico pouco cívico obriga a parar, apontando-lhe a caçadeira, qual Wyatt Earp. O carro recua e sai rapidamente de cena.

Pelas imagens transmitidas pelas televisões, vê-se que, pouco depois, o condutor deste triste episodio, já em pé, é encostado ao carro, desalgemado e mandado seguir. Duvido que lhe tenham dito, desculpe senhor condutor, pode seguir, conduza em segurança.

Ver a policia portuguesa atuar com esta violência perante um cidadão que nada tinha feito é um preocupante sinal de que algo vai muito mal.

Aconteceu tudo isto no Far West? Num escuro beco de Chicago? Um dos agentes era o Dirty Harry? Nada disso, foi numa das rotundas de entrada da Cova da Moura, espaço amplo e iluminado, já os tumultos estavam mais controlados

Será este o protocolo habitual para identificar um automobilista? Ou será só aplicável nas zonas sensíveis? No Restelo também procedem assim quando querem ver um cartão de cidadão? Ou só se aplica a condutores sem casaco e gravata e não brancos?

Estas imagens vão ser mostradas nas aulas de formação da PSP? Como sendo um bom ou um mau exemplo? Algum civil está verdadeiramente atento ao que se ensina nas academias de polícia? Será que se podem conhecer os protocolos da polícia?

A verdade é que passados todos estes dias só assisti a uma indignação pública (obviamente não vi tudo). Foi a do jornalista Paulo Baldaia, na SIC.

A ministra nada disse. O diretor geral da PSP ficou calado. A atenção dada à, então recente, morte de Odair Moniz estava a esgotar a atenção de políticos e demais intervenientes. Por isso, valerá a pena voltar a rever o sucedido.

Odair Moniz pode ter morrido por um infortúnio, porque estava perante um polícia exaltado ou inexperiente, em legítima defesa ou até porque teve pela frente um extremista infiltrado na PSP.

Aqueles três agentes atuaram ao estilo John McClane, com uma coreografia obviamente ensaiada. Aquilo foi ensinado, treinado. O silêncio da hierarquia leva-me a supor que nada têm a dizer e até concordam

Até pode ser um caso raro na corporação. Havemos de saber.

Porém, aqueles três agentes atuaram ao estilo John McClane, com uma coreografia obviamente ensaiada. Aquilo foi ensinado, treinado. O silêncio da hierarquia leva-me a supor que nada têm a dizer e até concordam.

As polícias têm poderes especiais. Muito do seu trabalho é, e tem de ser, realizado com secretismo. Mas é precisamente este estatuto de exceção que traz especiais exigências de transparência e obriga à nomeação de responsáveis que tenham capacidade de se fiscalizar e deixar fiscalizar. As polícias levantam suspeitas, mas não podem estar sob suspeita.

Passaram vários dias sobre os acontecimentos na Amadora, até houve um congresso da PSP, e nada de novo foi dito. Também no domingo, ficámos a saber, pelo Público, a história completa da detenção de dois jovens na Av. Almirante Reis, em Lisboa, no final de setembro, que gritaram “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais” à passagem de uma manifestação do Chega. Eles foram detidos, mas o manifestante que começou as agressões e os atingiu, à frente de polícias, seguiu em paz. Também neste caso, os esclarecimentos da PSP foram intranquilizadores.

O vandalismo que se viu na região de Lisboa após a morte de Odair, e o papel que a polícia teve na defesa de pessoas – e de bens seus – que não tiveram qualquer responsabilidade no evento, restituiu alguma da imagem de urbanidade que a corporação vinha conquistando. Se duvidas houvesse, a polícia mostrou que faz falta.

Mas por isto mesmo, a nossa PSP não pode dar imagem de estar em roda livre e sem regras de intervenção claras, conhecidas e sancionadas pelo poder democrático. O poder “civil” não pode andar alheado do que se passa, nas esquadras e nas ações de formação.

Se assim for, teremos um novo Odair Moniz muito em breve.