Opinião

Digitalização da Saúde em Portugal: é preciso sermos mais ambiciosos

Sem infraestrutura, sem uma arquitetura adequada, sem sistemas de informação sofisticados e ágeis, sem recursos humanos qualificados não é possível sonhar com a digitalização da saúde em Portugal. Ainda se vive das “receitas electrónicas”, conquista com mais de 10 anos e hoje completamente ultrapassada

O sistema está em baixo, tem de aguardar!

São realmente frequentes as quebras no acesso aos sistemas de informação nos cuidados primários e nos hospitais. Se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) almeja o futuro, não pode manter processos de trabalho do século passado. Há anos que os problemas estão identificados e não há meio de colocar os sistemas de informação a comunicarem entre si.

A complexidade da gestão dos serviços de saúde e a limitação de recursos disponíveis exigem hoje o apoio sofisticado de sistemas de informação (SI), sem os quais não será possível a adequada integração de cuidados, o bom suporte à decisão clínica e o envolvimento dos utentes. Comparando com outros sectores da economia como a banca, as telecomunicações ou a energia, a saúde vive ainda na “idade da pedra”.

Sem infraestrutura, sem uma arquitetura adequada, sem SI sofisticados e ágeis, sem recursos humanos qualificados não é possível sonhar com a digitalização da saúde em Portugal. Ainda se vive das “receitas electrónicas”, conquista com mais de 10 anos e hoje completamente ultrapassada.

A telemedicina basicamente não existe. Alguns médicos usam o seu próprio telemóvel (em regra, as unidades só têm um telefone) para contactar, frequentemente sem aviso prévio, os doentes impossibilitados de se deslocarem ao centro de saúde, e supostamente realizam uma teleconsulta. Mas uma teleconsulta é bem mais do que uma chamada telefónica, exige desde logo contacto visual com vista à perceção da sintomatologia.

Existem dados do SNS que não estão validados e integrados, o que dificulta quaisquer análises do impacte das patologias na população nacional, como a gripe, por exemplo. Nas bases de dados do Registo Oncológico Nacional, é possível detectar imensas falhas e uma arquitectura impensável no século XXI, para além de uma grande burocracia, que demora 6 meses a fornecer dados para investigação.

O SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) continua a ser apenas um sistema de registo, com pouca capacidade de garantir uma boa comunicação e sem funcionalidades de planeamento. Muitas das Unidades de Saúde Pública (USP) ainda utilizam tabelas Excel para registar e analisar dados, sem que exista um formato único. Ao nível dos cuidados primários os computadores em uso possuem com frequência software desactualizado e não têm camara, o que impossibilita o desenvolvimento de serviços como a telemedicina. Os serviços em geral estão depauperados de técnicos de informática e, portanto, incapazes de resolver pouco mais que questões típicas de “help desk”.

Esta incapacidade há muito que foi identificada. Em plena pandemia, em muitos serviços o registo dos casos não foi feito na plataforma SINAVE, como deveria ter sido, devido à sua pouca agilidade, tendo sido utilizada outra aplicação para este efeito. O início da vacinação correu mal: por exemplo a ARS de Lisboa e Vale do Tejo tinha três bases de dados com informação dos utentes diferentes, que tinham que percorridas para a localização do nome de cada pessoa para iria ser vacinada. O sistema de “contact tracing”, largamente promovido, também foi um desastre, sendo retirado passado uns meses por incapacidade de contribuir efectivamente para a resposta. Neste período observa-se o contributo positivo das farmácias, que foi melhorando com o tempo, e o lançamento do certificado de vacinação, com a orientação da União Europeia e o esforço dos profissionais de saúde, com especial destaque para os médicos de saúde pública, e apesar dos constrangimentos suscitados pela proteção de dados.

Efetivamente, o Plano Estratégico Nacional de Telessaúde (PENTS) de 2019, acabou por refletir apenas boas intensões e lugares-comuns, sem definição clara de prioridades, de investimentos, e sem a preocupação de manter uma ligação às Universidades com um papel essencial nesta área específica que exige permanente atualização.

Sublinha-se que existem centros de investigação em Portugal, como o CINTESIS/Universidade do Porto, o IEETA/Universidade de Aveiro, a UINDEMI/Universidade Nova de Lisboa, e também nas Universidades do Minho e de Coimbra, que têm desenvolvido tecnologia e ciência de nível internacional que poderiam contribuir para construir um roteiro para a digitalização da Saúde em Portugal, envolvendo o SNS, e os grupos privados e o setor social. Existem também algumas empresas especializadas em saúde que poderiam complementar a “triple hélix” da inovação: estado-empresas-universidades.

A entidade responsável pela gestão dos sistemas de informação (SI) do SNS é a SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde) que surgiu em 2010, com o objetivo de prestar serviços partilhados específicos da área da saúde em matéria de compras e logística, financeiros e recursos humanos aos estabelecimentos e serviços do SNS. A SPMS veio assim retomar o trabalho do antigo IGIF (Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde), iniciado em 1993, responsável pela criação dos primeiros SI nos hospitais que, em 2005, com a reforma dos Hospitais SA, ganham nova importância.

Contudo, desde então, muitos investimentos foram realizados sem planeamento estratégico e sem uma aposta concreta nos recursos humanos especializados em SI da saúde, e apesar de existirem estudos (Lapão, 2007) que apontam as fragilidades da gestão de SI em Portugal, nomeadamente, ao nível do número de técnicos contratados, existe, em média, um par de técnicos de SI para cada hospital, quando, por exemplo, nos Estados Unidos da América, a proporção é de 1 técnico de SI para 50 trabalhadores.

Efetivamente, é primordial desenvolver uma estratégia própria para os SI, respetivas abordagens de implementação, reflexão estruturada sobre arquitecturas, interoperabilidade e segurança e conhecimento técnico-científico. Seria mais fácil atingir este objetivo através da criação de uma estrutura própria focada especificamente neste problema, uma Direção-Geral de Sistemas de Informação para a Saúde, com áreas especializadas na informação clínica de saúde e nas plataformas de comunicação com os utentes, como acontece em muitos países.

As políticas públicas de saúde devem procurar empoderar os utentes, fazendo um uso inteligente dos seus dados de saúde, mas sem deixar de os partilhar, de modo agregado e anónimo ou mediante consentimento expresso, de modo a permitir tirar partido do enorme potencial da análise avançada com algoritmos (sem e com inteligência artificial) e criar mais-valias que, verdadeiramente, sejam um contributo decisivo para apoiar a saúde dos cidadãos portugueses.

Este processo não pode deixar de ser enformado por critérios éticos em todas as fases do procedimento, desde a recolha à publicitação dos dados de saúde e seu posterior armazenamento, com respeito pela privacidade - reconhecidamente, um direito humano - autonomia, transparência, e responsabilidade, fundamentado na utilidade da sua utilização, designadamente, para efeitos de investigação científica.

As ULS nas suas estratégias de digitalização beneficiariam muito de orientações técnico-científicas alinhadas com a estratégia Europeia (European Health Data Space) a fim de poderem assegurar a evolução para uma maior integração de dados da saúde no médio-longo prazo. Tal como em outros países europeus, os SI de saúde exigem hoje um maior rigor técnico-científico garantido com profissionais qualificados e forte ligação à academia.