Exclusivo

Opinião

Então, digamos assim

Uma crónica em que se fala de Acidentes Vasculares Linguísticos

Vamos imaginar que desenho aqui um velho num lar. Nada de angustiante, prometo. Como pode ser o que eu quiser, dada a circunstância de não existir, desenho um velho ainda muito catita, bem-parecido, sem odores fora de prazo. E um velho que os filhos visitam. Ena, ena, só luxos. Vamos vestir-lhe um roupão confortável, de marca internacional, feições resistentes à gravidade, linguajar que revela idas à escola, e gestos que demonstram que teve uma mãe que ralhava — em momento nenhum mastigas de boca aberta, ouviste? E um cachimbo. O que acham de um cachimbo? Que ele não pode fumar em momento algum em nenhuma divisão do lar, exceto quando a enfermeira preferida (Dália? Emília? Sugestões?) lhe sorri e concorda: pronto, vá lá, mas ali mesmo ao pé da janela aberta, não quero cheirar nem fiozinho de tabaco. Falta o nome. Chamar-lhe-ei Amadeu Vaz. Amadeu porque sim, é o que me apetece enquanto o construo, estou a olhar para ele e é uma cara chapada de Amadeu, Vaz porque, como se verá, é uma piscadela de olho ao Camões. “Como se verá” e “piscadela de olho ao Camões” também não são de desprezar, reparem que isto começa a ter várias camadas. Entramos no quarto (agradável, luminoso) e verificamos que Emília (ficou Emília) está a verificar a pressão a Amadeu, que sentado a olhar lá para fora procura não parecer ansioso enquanto o garrote desincha num assobiozinho, embora saiba, embora aposte quanto quisermos, que vai acusar tensão alta outra vez.