Qualquer que seja o desfecho do ato eleitoral do dia 4 de novembro, já ninguém consegue desmentir que a desistência de Joe Biden e a aposta noutra candidatura com a aura de Kamala Harris não tenha sido a jogada acertada do partido democrata americano. A convenção dos últimos dias cimentou de vez esta realidade, mas mesmo isso se tornou evidente muito antes.
Não tirar algumas ilações a partir daqui e outras para lá daí, seria um erro que não estou disposto a correr. Para o bem e para o mal, a nação indispensável vive de um reflexo e influência como nenhuma outra no mundo.
Vamos então ao que julgo ser o mais importante a reter ao momento.
Nunca subestimar a máquina
Há um mês e meio, este partido que agora se apresenta inequivocamente como a força motora de uma certa e inegável alegria, normalidade, decência e da energia democrata estava desesperado e condenado por tantos nesta Europa. Em tempo recorde, arriscou, uniu, inspirou e soube dar uma saída digna a um presidente que fez um excelente mandato, mas que teimava em não tomar a decisão que os mais perspicazes tanto pediram desde o debate decisivo.
Sim, esteve aqui o melhor do pragmatismo americano em perceber desde logo que esta é uma das eleições mais relevantes da história. Sem a máquina do partido, nada disto seria possível. E como se acabou por conseguir que Joe Biden saísse? O meu segundo ponto procura responder a isso mesmo.
As elites dos democratas, tão criticadas outrora, são em parte as grandes responsáveis pela nova vida do partido. É preciso aceitar este facto.
Não foi só a luz e a qualidade evidente na convenção através dos seus discursos. Essencialmente, sem os Obama’s, mas também sem os Clinton’s, Pelosi e a esfera de alguns doadores de peso, o presidente americano manter-se ia muito provavelmente como candidato presidencial e hoje falar-se ia de uma campanha depressiva, sem energia e da vitória incontornável de Trump em novembro.
O que mais impressiona a partir daqui é a forma como as elites democratas, do partido aos media, se alinharam e pressionaram de forma constante, através de todas as vias e junto de Joe Biden, a mudança que pretendiam. Sempre na defesa do legado do atual presidente, provaram ser os seus amigos maiores, tal como do partido democrata e do próprio país.
A mudança estratégica. Do “when they go low, we go high” a when they keep low, we punch harder and sharper.
Donald Trump está longe de ter um grande currículo eleitoral. Conseguiu como poucos perder uma reeleição e afunilou o partido republicano para uma espécie de seita do ódio e das teorias da conspiração que infestam e ganham tração no Ocidente desde 2016. Pai do novo movimento da direita radical e extremada tanto no país como no mundo, a sua força maior reside aí.
A linguagem em relação aos seus adversários políticos não mudou. Quando muito, piorou. As teses conspirativas e as narrativas falsas não perderam intensidade. São cada vez mais frequentes e dispõem hoje de um leque alargado de ferramentas ao seu alcance no mundo digital.
O tal projeto 2025 dos republicanos é o passo seguinte do extremar do trumpismo. Além do reacionarismo intencionalmente confundido com um certo conservadorismo, existe todo uma nova nuvem sinistra contida ali que descaracterizaria de forma definitiva os EUA e faria o país recuar séculos.
Da linguagem, aos métodos, a esta realidade, os democratas já não têm ilusões quanto ao facto de Trump e quem o rodeia, querer destruir a democracia. Através de todos e quaisquer meios. Por isso mesmo, largaram a ilusão de que se pode combatê-lo sem verdadeiramente atacar a raiz e todos os que a exponenciam. Barack Obama, de forma subtil, sabia bem quais as plataformas que visava com aquele seu gesto durante o discurso na convenção. É esta a mudança estratégica democrata. Vão-se sujar, mas é por aqui que ganharão em novembro a Casa Branca (sim, estou a fazer futurologia), contra as expectativas e sobretudo, depois da icónica imagem e não só, de Donald Trump após a tentativa de o assassinarem.
Esta nova estratégia do partido democrata deveria ser retida por todos os líderes europeus do espaço democrático hoje. Não se combate este fenómeno extremado, sobretudo com todos os alicerces que têm ao seu dispor hoje, com falinhas mansas. Ou, julgando que basta uma política eficaz e com resultados do espaço democrático para os esvaziar. Muitas vezes até crescem mais nesse contexto.
É preciso mais e não é preciso olhar apenas para os EUA para ganhar noção da dimensão dessa ilusão. Será preciso ‘esmurrar’ melhor e acertar onde dói mais. Como Obama fez e como todo o complemento estratégico dos “weird” nesta fase da campanha por parte do partido democrata indicia.
Aconteça o que acontecer em novembro, o partido democrata americano já deu uma lição com vários sinais sobre por onde passa a defesa da democracia nos próximos anos.