Opinião

Casas para os comuns na casa comum da Europa

Se esta nova pasta da habitação tiver êxito, teremos assentado no chão da construção europeia uma pedra-angular da tão almejada Europa Social

Perante a crise da habitação que desde há anos fustiga milhões de europeus, o nosso continente tornou-se num laboratório de políticas habitacionais. Há para todos os gostos nos tubos de ensaio dos urbanistas e decisores nacionais e locais. Mas são já poucos os que ainda experimentam com os reagentes do mercado. As soluções mercantilista e liberista falharam estrondosamente. Elas estão, de resto, na raiz do problema.

No período que vai de 2010 a 2024, os preços das casas subiram quase 50% na UE a 27. Os aumentos mais aparatosos ocorreram na Estónia (+223%) e na Hungria (+207%). A receita liberal é, portanto, tão fruste quanto a fórmula iliberal. No abastado Luxemburgo, os preços aumentaram 124%. O m2 atingiu aí os 13.000€ para uma habitação nova. Cada vez mais famílias do Grão-Ducado atravessam a fronteira para se alojarem na Bélgica, na França ou na Alemanha. Nas liberais Holanda e Bélgica os preços subiram 70% e 50%, respetivamente, sendo que, na Holanda, há uma escassez de casas estimada em 1 milhão.

Quanto às rendas, elas deram um salto de praticamente 24% no mesmo período. A Irlanda, o tigre celta que os nossos liberais tanto festejam, é o terceiro país onde estas mais aumentaram (+104%). Se dúvidas houvesse, os dados do Eurostat mostram que os Estados-membros com governos de colheita liberal (Irlanda, Bélgica, Holanda, Estónia, França e Luxemburgo) aparecem hoje a vermelho no mapa estatístico que dá conta do índice dos preços reais da habitação.

Não espanta, pois, que mesmo países com governos dessa coloração ideológica estejam a converter-se ao intervencionismo público. Na França do “neoliberal” Macron, por exemplo, procura-se agora restringir o alojamento de curta duração, com o Orçamento de Estado a carregar nos impostos sobre esta modalidade. Só os liberais portugueses ainda acendem velas no altar do mercado, tomando as dores do AL.

Onde é que o problema da habitação é menos expressivo? Onde a oferta habitacional não é orientada pelo lucro, mas por esquemas associativos, cooperativos e mutualistas, como na Áustria ou na Dinamarca. Inexplicavelmente, o resto da Europa hesita em copiar e adaptar estes modelos. Alguns Estados-membros aplicam-se agora – tardiamente – na expansão do stock de habitação pública. Simplesmente, as verbas necessárias são de tal magnitude que não vale a pena continuarmos a fazer de conta que países menos prósperos, como é o nosso, vão solucionar o problema a partir do Orçamento de Estado ou a partir dos erários municipais. Tampouco o vão resolver com as verbas do PRR nacional, embora este seja uma ajuda preciosa.

Face a este cenário, não há como subestimar a indigitação de um Comissário ou de uma Comissária com a pasta da Habitação, anunciada há dias por Ursula Von Der Leyen. Independentemente dos fundos que possam ser mobilizados para construir casas, a mera coordenação a nível europeu dos esforços para enfrentar esta crise merece ser saudada com efusividade. Ela vai de encontro ao objetivo da harmonização progressiva das políticas sociais que já estava contido na Resolução de Messina, que precede em dois anos o seminal Tratado de Roma, e ao objetivo do “progresso social” consagrado no Tratado de Lisboa.

O que é de todo absurdo, para não dizer iníquo, é que os fundos europeus possam continuar a ser usados na construção de hotéis que subtraem área edificável e residencial, mas não possam ser usados para proporcionar residências a tantas pessoas que vivem atormentadas por não conseguirem pagar uma casa com os salários que auferem.

É preciso dizer que a ação da União Europeia nesta área não aparece do nada. Já em 2021, sob os auspícios do então vice-presidente Franz Timmermans, um socialista holandês, lançou-se a denominada “onda de renovação”, uma das ramificações do Pacto Ecológico Europeu, a fim de reabilitar 35 milhões de edifícios energeticamente ineficientes até 2030, com os montantes disponíveis através dos PRR e do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027. Aprovou-se o New European Bauhaus, com a pretensão, algo quimérica, de repescar o espírito de Walter Gropius e casar funcionalidade, estética e – agora – racionalidade ecológica. Também em 2021, na Cimeira Social do Porto, deu-se à luz uma Plataforma Europeia de Combate ao fenómeno dos Sem-Abrigo. E, pouco depois da oportuníssima e precursora carta que António Costa enviou à Presidente da Comissão Europeia, em 2023, para que esta elegesse a habitação como uma prioridade, o pleno dos ministros europeus com esta pasta, reunidos em Gijón, consensualizaram uma declaração que pedia instrumentos comuns de regulação do setor.

Note-se que a habitação é, desde há algum tempo, objeto de recomendações específicas por país no âmbito do processo do Semestre Europeu. É previsível que essas recomendações passem agora a ter um escopo mais orgânico e atuante.

Se esta nova pasta da habitação tiver êxito, teremos assentado no chão da construção europeia uma pedra-angular da tão almejada Europa Social. O sucesso na habitação fará alastrar a intervenção da União a outras áreas fulcrais do Estado social, como a saúde e a educação, também elas em crise na quase totalidade dos países europeus. É certo que esta trajetória não agradará aos detratores do federalismo, pois ela encaminha-nos para esse horizonte, passo a passo, degrau a degrau, tijolo a tijolo.

A casa é o nosso primeiro mundo, a porção dele que cabe a cada um. A possibilidade do recolhimento e do recuo, do refúgio e da convalescença. É uma extensão da nossa intimidade. É recipiente das nossas aflições e teatro das nossas alegrias. Modela a nossa relação com o mundo e connosco mesmos. A casa é o vaso do nosso enraizamento. O antídoto da errância e da indigência. Concebê-la como um artigo de consumo a que só alguns podem aspirar é uma estocada imperdoável naquilo que podemos apelidar de identidade social europeia. A Europa é a nossa casa comum. Falta-lhe ser a Europa das casas para os comuns.