Opinião

Mário Soares e o espírito europeu, nos 100 anos do seu nascimento

Portugal teve em Mário Soares o político que melhor encarnou o espírito europeu. Se o nosso país se tornou membro da União Europeia, a ele o devemos mais que a qualquer outro. Não obstante essa evidência, há um obscurecimento do seu papel de timoneiro da nossa aventura europeia, no ano em que celebraria cem anos

Portugal teve em Mário Soares o político que melhor encarnou o espírito europeu. Se o nosso país se tornou membro da União Europeia, a ele o devemos mais que a qualquer outro. Não obstante essa evidência, há um obscurecimento do seu papel de timoneiro da nossa aventura europeia, no ano em que celebraria cem anos – e a escassos dias da mais importante eleição do Parlamento Europeu desde o sufrágio inaugural de 1979.

Numa época em que a ditadura parecia de pedra e cal, acossado pelos esbirros do regime, preso, deportado e forçado ao exílio, Mário Soares já acalentava o sonho de resgatar o país ao sórdido isolamento do Estado Novo e de o apontar a um destino europeu. O regime salazarista só se abria ao mundo para exibir pantominas que mascarassem a realidade do colonialismo ou a miséria dos portugueses, apoucando um país que tinha sido "super-europeu" avant la lettre, como escreveu Eduardo Lourenço. Ainda mal arrefecido o braseiro do PREC, o Governo chefiado por Soares formalizou expeditamente o pedido de adesão à então CEE, ato que “trazia na cabeça como um objetivo prioritário desde o meu regresso do exílio” (Um Político Assume-se, 2011). A entrada na comunidade europeia equivalia a uma revolução coperniciana na mentalidade lusa, mas também significava a “modernização das nossas estruturas económicas, sociais e políticas” (Diálogo de Gerações, com Sérgio Sousa Pinto, 2004). Enquanto Primeiro-ministro do IX Governo Constitucional, pressionou e persuadiu os parceiros europeus, vencendo aos poucos as relutâncias que subsistiam – mais por conta de Espanha que por nossa. É dele a assinatura que consta do Tratado de Adesão, celebrado nos Jerónimos em 1985. Com essa assinatura, declarou ele ao Le Monde nesse mesmo ano, “colocávamos um ponto final no nosso ciclo imperial; o peso do nosso império tinha-nos distraído da Europa e tinha-nos feito entrar em decadência” (Mémoire Vivante, 2002).

O seu quadro mental era o de um estadista educado na arte da deliberação, na ética da discussão, na leitura dos clássicos e dos contemporâneos, dono de uma intrepidez de ânimo raras vezes igualada. Mário Soares nunca temeu perder eleições ou combates políticos. Desdenhava os modismos, as meias-tintas, a sonsice, os silêncios esfíngicos, a obsessão com a imagem mediática. Tudo nele era firmeza, desassombro e direção. Por isso, nunca receou assumir-se defensor de uma Europa federalista. Aliás, sempre fora federalista e “já o era muito antes de Portugal ter entrado na Comunidade Europeia, já o era no tempo do salazarismo” (Diálogo de Gerações). Para Soares, a Europa federal era a antítese de uma Europa burocrática e indolente – confundia-se com um continente politicamente unido na diversidade e no respeito das identidades nacionais. Com igual desembaraço, argumentou a favor da criação de umas forças armadas europeias e de uma indústria militar comunitária, financiada por novos recursos próprios. O debate que hoje nos ocupa não nasceu com os tambores da guerra na Ucrânia.

Se a Europa dos últimos vinte anos se tornou um enredo de tabus, para Soares não havia tabus: fossem eles a Europa federal, um exército europeu ou um imposto europeu. Aos que entoavam o refrão da soberania atraiçoada, respondia-lhes que a soberania era “um problema de outro tempo (…), uma questão retórica sem nenhuma consequência” (Diálogo de Gerações). Que político português teria hoje a audácia de falar assim? Ele percebera precocemente que o conceito clássico de soberania era um conceito esvaziado e inoperante, que os espíritos superficiais confundiam – e confundem ainda – com a identidade ou com a independência. De resto, Portugal não teve muitos patriotas do seu calibre. Que outro desígnio o moveu senão o de tirar o país do marasmo? O seu patriotismo era um patriotismo evoluído, por oposição a um patriotismo calcificado e impotente. Era, no fundo, um patriotismo superior, porque dava espaço a um patriotismo europeu.

Claro que o ex-Presidente da República sofreu até ao osso o período em que Portugal foi um protetorado da troika e o Governo da época o executor das penitências que esta decretava – e das que o próprio decretou. Convicto de que o castigo se devia à tibieza dos líderes europeus e à imoralidade dos mercados, Soares não calou a sua desilusão e indignação. Em vez de evoluir, a UE involuíra. Infelizmente, o antigo deputado europeu não teve tempo de vê-la aprender com os erros, a ponto de pulverizar tabus como o da emissão de dívida conjunta. Na resposta à crise das dívidas soberanas, a UE sacrificou as pessoas à economia. Na resposta à crise pandémica, sacrificou a economia para salvar pessoas.

Mário Soares deixou-nos no período de convalescença da troika, com o país reanimado por um governo das esquerdas, ao qual deu a sua unção, num dos últimos gestos políticos significativos do seu extraordinário percurso. Mesmo lamentando que o socialismo europeu fosse mais proclamatório que atuante, o fundador do PS nunca duvidou de que o lugar reservado à família socialista no palco da construção europeia era a boca de cena. Em 2004, declarava que “ser-se socialista e contra o projeto da construção europeia é, a meu ver, um contrassenso. São projetos independentes, mas que devem andar a par” (Diálogo de Gerações).

Vimo-lo amiúde a deplorar a tacanhez dos líderes europeus do início deste século. Com amargura, constatamos a veracidade desse diagnóstico. Se a União de hoje não sabe para onde vai – ou não se decide a ir para onde quer ou deve ir – é também porque lhe faltam espíritos desafiantes, indóceis, joviais, como era o de Mário Soares, capazes de encontrarem dentro de si a coragem de decidir nas ocasiões em que se impõe decidir, capazes de “trinchar o real”, como diria Paul Ricoeur (antigo mentor intelectual de Emmanuel Macron…).

Mário Soares transportava consigo a bagagem da História e as chaves para interpretá-la. Nestes tempos em que a História retorna, com toda a ferocidade, e nos apanha desequipados dos quadros de pensamento que serviam para racionalizá-la, a falta do fundador do Partido Socialista há-de ser sentida por muitos e muitas. Nele tivemos a mais aprimorada síntese do lutador e do intelectual, do governante e do idealista. E a prova de que a política não é uma atividade menor ou subsidiária, mas central à existência humana quando é feita por personalidades à altura de cada época – à altura do espírito europeu.