De repente, a questão da eventual reintrodução do serviço militar obrigatório regressou em força ao espaço público. Tenho a forte convicção (para não dizer a certeza), porém, que a situação actual não vai mudar, uma vez que se trata de tema que, manifestamente, não dá votos. Ao contrário, até pode tirá-los. E, nessa medida, os partidos tenderão, ou a recusar liminarmente essa reintrodução ou a escudar-se atrás da fórmula habitual da necessidade de promover um amplo debate nacional acerca das suas vantagens e desvantagens. Ainda assim, e porque tenho simpatia por (algumas) causas perdidas, não deixarei de explicar os motivos pelos quais sou favorável ao serviço militar obrigatório.
Os argumentos daqueles que rejeitam a solução situam-se, fundamentalmente, em dois planos – o da liberdade e o económico. Apreciemo-los, então.
A obrigação de prestação de serviço militar seria, antes do mais, uma intolerável violação da liberdade individual daqueles a quem essa obrigação fosse imposta. E, curiosamente, tal leitura é partilhada por campos ideológicos tão distintos como os liberais e a extrema-esquerda… Mas não tem, a meu ver, qualquer sentido.
Bem sei que vivemos em sociedades em que se hipervaloriza a dimensão dos direitos e se desconsidera (quando se não ignora) a vertente dos deveres. Mas, se olharmos atentamente para a Parte I da nossa Constituição, constatamos que o seu título não é, apenas, “Direitos fundamentais”, mas “Direitos e deveres fundamentais”. E, se é certo que a ênfase é colocada, sobretudo, no plano dos direitos, ao longo do seu texto alude-se, embora esparsamente, a deveres dos cidadãos. E um deles, de acordo com o n.º 1 do artigo 276.º é, precisamente, a defesa da Pátria.
No seu texto original, estabelecia-se que o serviço militar era obrigatório, nos termos e pelo período que a lei estabelecesse. E assim permaneceu até à revisão de 1997, que aboliu a obrigatoriedade no plano constitucional, remetendo para a lei o estabelecimento da sua natureza (voluntária ou obrigatória).
E isto impõe uma primeira conclusão: a de que a reinstauração do serviço militar obrigatório não requer qualquer modificação da lei fundamental, bastando para tal a alteração da Lei de Defesa Nacional e da Lei do Serviço Militar.
Por outro lado, não é por caso que, embora a Constituição estabeleça um regime geral de equiparação entre cidadãos portugueses e estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal no que toca direitos de que gozam e aos deveres a que estão adstritos (n.º 1 do artigo 15.º), reserva a prestação de serviço nas Forças Armadas, em exclusivo, aos Portugueses (n.º 2 do artigo 275.º). O que é totalmente coerente com a ideia de que é obrigação dos Portugueses (e de mais ninguém) a defesa da Pátria.
É absurdo, assim, considerar, que o cumprimento do serviço militar obrigatório constituiria uma limitação à liberdade individual. Porque em causa estaria, apenas, o cumprimento de uma obrigação permitida e fundamentada com a realização de um interesse constitucionalmente protegido de primeira grandeza.
No limite, aliás, essa concepção levaria a uma conclusão paradoxal: a de que, em nome da liberdade individual, nenhuma obrigação, ainda que plenamente justificada, poderia ser imposta sem permissão do próprio… O que, necessariamente, poria em causa a existência de regras jurídicas indispensáveis à vida em sociedade e conduziria ao questionar do próprio conceito de Estado.
Passemos, então, ao argumento económico. A ideia na base dele seria que a substituição do regime de voluntariado pelo sistema de conscrição aumentaria exponencialmente a despesa, ainda para mais sem dar quaisquer garantias de eficiência e eficácia, atenta a elevada especialização de que as tarefas militares hoje se revestem e a sofisticação dos equipamentos e materiais utilizados.
A isso poderia responder-se, desde logo, com a prática de outros países que nos são próximos, que mantêm (Áustria, Dinamarca, Finlândia, entre outros) ou até reintroduziram o serviço militar obrigatório (casos da Suécia em 2017 ou da Letónia, no início deste ano). Mas o meu ponto é outro.
Creio que ninguém poderá, sensatamente, pretender substituir forças armadas profissionais por outras que tenham por base o serviço militar obrigatório. O que se justifica, antes, é uma coexistência harmoniosa e inteligente dessas duas dimensões.
Assim, em tempos de paz, a estrutura operacional das forças armadas deve assentar na profissionalização. Sendo que, em Portugal, isso está longe de garantido, tendo em conta a patente incapacidade dos últimos governos para encontrar soluções que assegurem níveis mínimos de recrutamento e o facto de estarmos muito longe de cumprir o objectivo dos 2% do PIB em despesas militares, estabelecido há 10 anos na Cimeira de Gales.
Infelizmente, porém, o Mundo vê-se confrontado, hoje, com a possibilidade real de um conflito de elevada escala. Fingir que esta situação não existe e que os riscos não são (mesmo) reais, é o pior dos equívocos. Pois que, como ensina a velha frase latina, a melhor forma de preservar a paz é tornar claro que se está preparado para travar uma guerra, caso ela venha a ocorrer.
Dito de outra forma: o serviço militar obrigatório não pode nem deve ser visto como um modo de contornar as dificuldades em assegurar que as forças armadas dispõem dos meios adequados à prossecução da sua missão. Isso faz-se através da adopção das políticas públicas correctas que têm faltado. Deve, antes, ter por desiderato preparar-nos para uma eventualidade que não desejamos, mas que não depende de nós afastar.
Os que se opõem ao serviço militar, embora sem o dizer, preferem aderir à lógica do NIMBY (“Not In My Back Yard”). Ou seja: se há perigos, que se faça o que é preciso, desde que isso não nos afecte a nós. Estão, a meu ver, errados. E só desejo que o futuro não confirme esse erro.