Opinião

Forças Armadas: mitos e realidades sobre o recrutamento de estrangeiros

O recurso a estrangeiros não significa de modo nenhum que a condição da profissão militar, hoje, não tenha de ser revista. Quer em termos de vencimentos quer de aspetos relativos ao apoio social e de saúde, os militares não podem continuar a ver outros sectores do Estado a ser bafejados pela atenção da tutela política e eles não.

A crise de recrutamento militar em Portugal dura há décadas, e as soluções sucessivamente ensaiadas têm falhado. A real capacidade das Forças Armadas Portuguesas está diminuída. Das soluções publicamente sugeridas para minimizar este problema, uma é o recurso a voluntários estrangeiros. Vou tentar neste artigo clarificar aquilo que me parece ser falta de informação fidedigna e mesmo algum preconceito, por vezes usados para descartar esta possibilidade.

Sendo uma prática usada em muitos países – nomeadamente na Europa – entre nós esta sugestão desperta imediatamente apaixonada e mesmo violenta oposição. A defesa da Pátria foi interiorizada ao longo do século XX como uma obrigação natural, mesmo entre aqueles que durante o seu cumprimento o detestavam e maldiziam, dos que o consideravam uma obrigação anacrónica em tempos de paz e os que tudo fizeram para não o cumprir. Assim não é de estranhar que nos portugueses – os do “tempo do SMO”, que durou menos de um século, de 1911 a 2004 – da extrema-esquerda à extrema-direita no panorama político-partidário, a simples sugestão de alistar estrangeiros sob a Bandeira Nacional provoque respostas violentas e mesmo acusações de traição à Pátria! Entre as camadas mais jovens – aqueles que não o conheceram e nunca lhes passou pela cabeça alistarem-se – e são os que na realidade já comandam os destinos do país ou em breve o irão fazer, talvez o olhar seja outro.

Mitos sobre o serviço militar prestado por estrangeiros

São vários e daquilo que se vai lendo talvez aqueles argumentos dados como certos mas mais afastados da realidade sejam os seguintes, listados sem qualquer ordem de importância. Vou tentar responder com dados objetivos e tão sintéticos quanto possível.

1 - Um estrangeiro nunca morrerá a defender Portugal

Um estrangeiro morrer a defender outro país é uma realidade que sempre aconteceu ao longo da história, até em Portugal, e acontece hoje em vários conflitos na Europa e no Mundo. Quantos estrangeiros morrem na Ucrânia a defender este país? Como se sabe há mesmo uma Legião Internacional nas Forças Armadas Ucranianas que recebe (e paga a) voluntários estrangeiros, muitos têm morrido a defender o país que escolheram servir. Muitos outros estrangeiros estão como voluntários (também pagos) nas Forças Armadas da Federação Russa. Quantos já morreram também? Quer de um lado quer de outro, esta é uma realidade hoje como sempre foi. Os portugueses que se alistam hoje na Legião Estrangeira do Exército Francês não têm presente que a “morte” faz parte das possibilidades do contrato assinado? Qualquer militar - sirva o seu país ou outro - sabe bem que a possibilidade de morrer em combate faz parte das suas obrigações.

2 - A “tropa” vai ficar cheia de estrangeiros

Impossível, somos nós que decidimos quantos queremos e quem queremos. Em todos os países que usam estrangeiros nas suas forças armadas, estes são em número reduzido face ao total. Ou estão disseminados por várias unidades e funções ou enquadrados em unidades especificas, por regra com elevada prontidão, capazes de serem empregues rapidamente e com grande eficácia. No Reino Unido há cerca de 4.000 Gurkas (nepaleses que servem o Exército Britânico) num Exército com mais de 75.000 militares no activo, embora haja também militares de outras nacionalidades disseminados pelas Forças Armadas britânicas, mas em número inferior. A Legião Estrangeira francesa tem cerca de 9.000 efectivos de muitas nacionalidades num Exército com mais de 100.000 militares; Em Espanha os estrangeiros, estão hoje espalhados por várias unidades, podem ser provenientes de algumas das antigas colónias espanholas na América do Sul e em África e em 2019 havia cerca de 7.000 militares estrangeiros ao serviço num exército com 80.000 militares. Cada país decide quantos quer recrutar, as suas origens e as exigências em termos culturais – se falam a língua ou não – as unidades onde os colocam e outros aspectos. Quem contrata decide!

3 - Os estrangeiros vão aceitar servir por menos dinheiro que os portugueses e assim os vencimentos nunca mais melhoram

Como é normal em qualquer parte do mundo os militares recebem de acordo com o seu posto e eventualmente a sua especialidade ou colocação. Qualquer estrangeiro que servisse em Portugal teria pagamento exactamente igual aos portugueses, mas mesmas condições de posto, colocação ou especialidade. E aqui deve-se realçar que as condições de serviço incluindo vencimentos, em Portugal têm definitivamente de melhorar. Se isso não acontecer nem portugueses nem estrangeiros poderemos recrutar. A grande vantagem dos estrangeiros e por isso muito países os recrutam é eles quererem servir! O principal problema em Portugal é não haver vontade da generalidade dos jovens de servir o seu país. Mesmo que os vencimentos aumentem razoavelmente estou convicto que o recrutamento de um número limitado de estrangeiros será útil.

4 - Podemos vir a ter forças armadas comandadas por estrangeiros

Nunca se verificou em nenhum país pela simples razão que quem recruta é que decide ao abrigo de que legislação. E isto não tem nada de extraordinário, acontece (sempre aconteceu!) com os militares portugueses. De acordo com vários parâmetros só alguns podem atingir determinados postos e desempenhar determinadas funções. Nem todos chegam a generais nem todos fazem tudo o que gostavam. Sempre de acordo com a legislação, sem mistérios.

5 - Os estrangeiros nas Forças Armadas são uma ameaça à democracia, podem revoltar-se e derrubar o governo

Não só não há antecedentes históricos nos países democráticos desta possibilidade como sendo o seu número reduzido e até eventualmente disperso, tal seria impraticável. A história de Portugal no século XX demonstra aliás que quem derrubou regimes (1926 e 1974) foram exércitos de conscritos conduzidos pelos seus oficiais profissionais.

6 - Iríamos contratar mercenários para nos defenderem

O universo dos “mercenários” e das empresas que os contratam nada tem a ver com o recrutamento de estrangeiros para integrar um exército nacional. Estes vão vestir o mesmo uniforme, saudar a mesma bandeira, receber o mesmo pagamento, estar inseridos em unidades militares com comandantes nacionais e estar abrangidos pela legislação do país onde servem. Estão nos antípodas dos mercenários que obedecem a uma empresa, os voluntários estrangeiros servem num exército regular e morrem se necessário por um país que adotaram como seu mas onde não nasceram.

Estrangeiros nas Forças Armadas Portuguesas

Parece-nos que a possibilidade de recrutar estrangeiros deve ser estudada. Outros países europeus estão a considerar essa opção. Se queremos realmente contrariar o problema da falta de efectivos rapidamente esta pode bem ser a forma mais exequível.

Fique claro que o recurso a estrangeiros não significa de modo nenhum que a condição da profissão militar, hoje, não tenha de ser revista. Quer em termos de vencimentos quer de aspetos relativos ao apoio social e de saúde, os militares não podem continuar a ver outros sectores do Estado a ser bafejados pela atenção da tutela política e eles não.

A sua inclusão nas forças armadas de vários países amigos e aliados na NATO é uma prática normal nos dias de hoje e em alguns deles tem centenas de anos. Conviveu aliás em vários com o serviço militar obrigatório para os naturais. Em outros é recente e decorre das dificuldades de recrutamento que também sentimos em Portugal e de modo talvez mais dramático pela dimensão que atingiu.

Esta será mais uma medida para contrariar a falta de voluntários em praças e não a única que resolve o problema, o número de estrangeiros será sempre uma pequena percentagem do total. Pequena mas não indiferente porque permitirá parar o decréscimo de efectivos.

O recurso a estrangeiros no curto prazo não invalida de modo nenhum que se atue a pensar no médio e longo prazo naquele que para muitos é o principal problema do recrutamento, a falta de vontade que os jovens portugueses mostram em servir o seu país.