Opinião

Por tudo o que é contra e contra tudo o que é por

O crescimento exponencial do Chega tem, pois, no essencial pelo menos, uma explicação clara. E tem, também, um nome e um rosto: o Partido Socialista e António Costa

Apesar de ter sido parlamentar durante vinte anos, nunca me cruzei nos corredores da Assembleia da República com qualquer Deputado do Chega. E isto porque, em 25 de Outubro de 2019, cessei o exercício daquelas funções. Foi nesse mesmo dia que André Ventura ali entrou pela primeira vez, fruto do lugar que conquistara nas eleições realizadas três semanas antes.

Ocorrido o sufrágio de Janeiro de 2022, o Chega passou para 12 Deputados. Com o sufrágio, de novo antecipado, realizado no passado domingo, o Chega multiplicou por duas vezes e meia o número de votos, mas quadruplicou os lugares parlamentares, chegando aos 48.

Esta ascensão meteórica levou os seus dirigentes (ou melhor, o seu dirigente único, porque ali tudo o resto é paisagem), quase em êxtase, a proclamar que a política em Portugal, como tradicionalmente a conhecemos, morreu. Não ponho em causa, evidentemente, o profundo abalo que o sistema político sofreu. Ainda assim, atrevo-me a pensar que o anúncio da sua morte é (ou pode ser) manifestamente exagerado. Explico porquê.

Pierre Dac foi um conhecido humorista e comediante francês, que atravessou grande parte do século XX. E é dele a imortal frase “Je suis por tout ce qui est contre et contre tout ce qui est pour” (que pode traduzir-se como “Sou por tudo o que é contra e contra tudo o que por”).

A frase em causa aplica-se, que nem uma luva, ao Chega. Se é para clamar contra alguma coisa (a imigração, a igualdade de género, a corrupção ou mais um sem fim de coisas), lá está ele, pressuroso, rasgando as vestes de indignação. Mas, quando se trata de construir, de forma séria, coerente e sustentada, respostas para os problemas que verdadeiramente afectam o País (a saúde, a educação, a justiça, o crescimento anémico, o incremento da pobreza, a carga fiscal elevada), aí já não se pode contar com ele para nada. Porque as soluções de todos os outros nunca são boas. E as (supostas) respostas que apresenta têm tanto de consistente quanto os rabiscos das crianças têm de arte….

A meu ver, os votantes do Chega podem dividir-se em dois grupos, claramente distintos.

De um lado, uma imensa minoria, politicamente motivada, que anseia por um regime de autoridade, em que a (sua) decência, a (sua) moral e a (sua) “ordem” imperem (mas que, curiosamente, e em absoluta desconformidade com essa postura, aprecia a boçalidade de linguagem do partido e os epítetos com que mimoseia pessoas que serviram Portugal nos mais elevados cargos e que, por mais que delas discordemos, são merecedoras do nosso respeito).

Do outro, uma imensa maioria que nele vê, apenas, um meio ocasional para veicular o protesto e indignação contra a leitura que fazem da situação de degradação de instituições e serviços públicos. Mas, sublinho, um meio meramente instrumental, desprendido de quaisquer amarras ideológicas.

Na transacta segunda-feira, aos microfones da Antena Um, fiz a minha análise dos resultados eleitorais, incluindo, naturalmente, o do Chega, bem como dos motivos que os podem explicar. Menos de uma hora depois, chegado ao meu escritório, recebi um simpático mail de um cidadão que não conheço, e que não resisto a aqui transcrever, porque me parece muito relevante, na linha de raciocínio que venho seguindo:

“Foi precisamente pelas razões que mencionou no seu comentário que votei no Chega! Um voto de protesto contra tudo o que mencionou, maus serviços públicos e altos impostos que estrangulam a classe média que depois se vê obrigada a ir ao privado a uma consulta, ou colocar os filhos em colégios se quiser um melhor futuro para os mesmos, apesar de estarmos a contribuir com os nossos rendimentos para termos acesso a tudo isso, mas só que não.

Posso acrescentar que se a governação da AD for boa e aliviar carga fiscal da classe média, melhorando também os serviços públicos e continuando a descida da divida externa, terão o meu voto no próximo acto eleitoral!”

Esta é, creio, a lógica que está subjacente à atitude da tal imensa maioria de votantes do Chega. Que não hesitarão, por um segundo que seja, em retirar-lhe o seu apoio, quando encontrarem, na acção governativa, as respostas para os seus anseios, tantas e tantas vezes situados, como no caso daquela mensagem, bem dentro dos limites da razoabilidade.

O crescimento exponencial do Chega tem, pois, no essencial pelo menos, uma explicação clara. E tem, também, um nome e um rosto: o Partido Socialista e António Costa. Que, em apenas cinco anos, geraram, com a sua inépcia, o caldo de cultura de insatisfação e de descontentamento que conduziu directamente a este desenlace.

Precisamente pela ausência de uma base sólida e estruturada de suporte, a posição do Chega é, a meu ver, muito menos sólida do que alguns querem fazer crer. É que o seu futuro não depende dele, mas de outros. E, nessa medida, se Luís Montenegro estiver à altura do complexo desafio que tem pela frente (como estou seguro que estará) e se o PS demonstrar, na oposição, um sentido de responsabilidade que, no Executivo, não patenteou (o que já é mais difícil), o Chega que se cuide. Porque o chão começará a fugir-lhe debaixo dos pés. E porque, quanto mais alto se sobe, maior (e mais rápida) pode ser a queda.

E, para aqueles que não se reveem na minha análise, apenas peço que olhem com atenção para a nossa história democrática. Porque aí encontrarão a evidência de outros partidos de protesto (embora do outro lado do espectro político) que já tiveram cotação eleitoral elevada e que hoje se debatem para não cair na irrelevância.

José Matos Correia escreve de acordo com a antiga ortografia