Na manhã do dia 11 de março de 2004, dez bombas explodiram em comboios suburbanos da linha de Alcalá de Henares, em Madrid. À data de redação (2024), assinalam-se 20 anos do atentado terrorista mais mortífero na União Europeia (UE) até à atualidade. Perpetrado por uma célula com ligações à al-Qaeda, provocou 191 vítimas mortais e milhares de feridos, cujas estimativas variam entre 1800 e 2050.
Conhecido pela sigla “11-M” e objeto de estudo exaustivo desde então, o impacto deste atentado ficou marcado com a implementação do Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo. Todos os anos, líderes europeus prestam homenagem às vítimas, procurando sensibilizar as comunidades para o combate aos extremismos. Recordar datas desta importância é um desafio do ponto de vista histórico e emocional, mas é vital por respeito às vítimas e pela segurança coletiva. Em 2025, assinalam-se outras duas tragédias: 20 anos dos ataques em Londres (7/7) e 10 anos dos ataques em Paris (13/11). Entre os vários aspetos que se podem salientar sobre o impacto do 11-M, destaco seis.
- A ameaça terrorista em território espanhol persiste, subsistindo um nível de alerta elevado. Os atentados de Barcelona e Cambrils em 2017 são evidentes da perigosidade da ameaça. Reivindicado pelo Daesh, o ataque provocou 15 vítimas mortais e feriu 131 pessoas.
O 11 de março surge novamente como um fator disruptivo: o líder da célula executante dos ataques em Barcelona, o imã radical Abdelbaki es Satty, tinha ligações a Rachid Aglif, um dos terroristas de Madrid. Satty, detido em 2012 por tráfico de haxixe, conheceu Aglif na prisão onde formaram uma “amizade particular”, revelam diversas fontes. A célula planeava perpetrar um ataque de grandes dimensões contra a Basílica da Sagrada Família - ou a Torre Eiffel - mas a detonação involuntária de explosivos aquando da preparação do ataque fez com que os terroristas mudassem de modus operandi, optando por recorrer ao atropelamento deliberado como método preferencial de ação. - A vigilância mantém-se apertada. Ao longo dos anos, Espanha tem sido alvo de sucessivas ameaças na propaganda terrorista e as autoridades têm desmantelado diversas células com possíveis ligações à al-Qaeda, Daesh e afiliados, bem como frustrado potenciais ataques em território espanhol.
Segundo dados do Ministério do Interior Espanhol, entre 11 de março de 2004 e 6 março de 2024, realizaram-se 410 operações no âmbito do combate ao terrorismo jihadista, nas quais se detiveram 1049 suspeitos. Só no ano dos ataques de Barcelona (2017), Espanha deteve 76 suspeitos em território nacional, o terceiro ano com maior número de detenções naquele período temporal. Mais recentemente, em 2022, dados da Europol demonstram que Espanha foi o segundo país da UE a registar o maior número de detenções relativas ao terrorismo jihadista, a seguir à França que ocupa o primeiro lugar. A maioria dos suspeitos detidos na UE é nacional de um país europeu, sendo que a nacionalidade espanhola é uma das mais prevalecentes.
Este panorama é uma das principais mudanças desde o 11-M: com o impacto dos ataques e a evolução da ameaça a nível internacional, os grupos jihadistas passaram a representar uma das principais ameaças à segurança nacional espanhola (e também europeia) em detrimento de grupos domésticos como a ETA. No entanto, a ameaça terrorista é abrangente, não se restringindo às ações de matriz jihadista. Por exemplo, em 2022 Espanha foi alvo de ataque terrorista anarquista/de extrema-esquerda que provocou uma vítima mortal. - As vítimas ainda sofrem com o 11-M. O documentário “11-M: Terror em Madrid” (2022) evidencia o seu sofrimento, mas também o esforço coletivo para sarar feridas e prevenir ataques semelhantes. Este é um trabalho que tem sido feito em colaboração com a União Europeia. Em 2020, a UE inaugurou o EU Centre of Expertise for Victims of Terrorism (EUCVT) com o objetivo de melhorar o apoio e a proteção das vítimas e, em 2021, publicou o Manual sobre Vítimas do Terrorismo. Este manual está disponível em diferentes versões, adaptadas à realidade de cada Estado-membro, tal como ilustra a edição espanhola e portuguesa, que contou com a colaboração da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Neste âmbito, salienta-se também a atenção da cinematografia europeia para esta problemática, como ilustra a minissérie belga “Bagagem Perdida” (2020) que retrata uma perspetiva muito dura e comovente sobre a dor dos sobreviventes e testemunhas, bem como a resiliência daqueles que tudo fazem para proteger, mesmo sofrendo. - A comunidade muçulmana mantém-se como um ativo central para a propaganda terrorista, quer para o terrorismo jihadista, quer para o terrorismo de extrema-direita. Esta comunidade é explorada de duas formas: por um lado, para efeitos de radicalização e, por outro lado, como alvo para ataques de ódio (islamofobia). Não obstante a instrumentalização por parte de grupos terroristas, ao longo dos anos tem-se verificado um empenho da comunidade islâmica espanhola na luta contra fenómenos religiosos radicais e no apoio às vítimas e sobreviventes.
- A perceção pública espanhola sobre o terrorismo é elevada, mas esta ameaça não é a mais importante perante outros desafios. O 11 de março é uma marca profunda na sociedade espanhola, mas é uma ameaça relativizada: em 2004, 59% de Espanhóis consideraram o terrorismo como um dos principais desafios para o seu país; em 2023, o resultado foi apenas de 3% em consequência do aumento do custo de vida e da eclosão da Guerra na Ucrânia. O trabalho das Forças e Serviços de Segurança bem como a evolução do contexto internacional contribuem para a mudança de perceção.
- Portugal é um aliado essencial na cooperação contra o terrorismo. Portugal e Espanha são parceiros aliados em múltiplos fora, privilegiando a cooperação multilateral para a prevenção e combate ao terrorismo. A colaboração entre congéneres policiais é frequentemente elogiada, partilhando preocupações semelhantes no âmbito da segurança, pela geografia e inserção no espaço europeu.
O dia 11 de março de 2004 persiste na memória de milhares de espanhóis e europeus. Estes seis aspetos são apenas uma parte de um impacto muito complexo, em um país que enfrenta múltiplos desafios. No conjunto da UE, Espanha é, a par da França e do Reino Unido, um dos países mais impactados pelo terrorismo ao nível de ataques, vítimas e detenções; tem um legado islâmico atrativo para a propaganda terrorista, bem como uma “cultura política propensa à polarização”, como refere o especialista Fernando Reinares.
Pese embora a complexidade da ameaça terrorista e os desafios das tecnologias emergentes, as autoridades têm uma certeza: “estamos aqui para salvar vidas”. Esta citação é ficcional, incluída na série “La Unidad” (2020), mas não menos verdadeira. A série, baseada no trabalho da unidade de contraterrorismo da polícia espanhola, estreou uma nova temporada em 2023. A equipa da inspetora Carla está no Afeganistão para novas operações e a ficção acompanha a realidade. Em diversas ocasiões, o governo espanhol reconheceu que a participação em missões internacionais é, para os terroristas, um incentivo para novos ataques. Vinte anos depois, e após o regresso dos Talibã ao poder, para onde caminha a Espanha?